sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

O HUMOR NEGRO DE UM FANTASMA


O arredio escritor Campos de Carvalho tem sua obra reunida após três décadas

(Publicado no caderno "Tribuna Bis", do jornal "Tribuna da Imprensa", em sete de abril de 1995.)

"Tenho vontade de sair gritando aleluia pelo Rio Vermelho afora", revela um eufórico Jorge Amado ao saber do lançamento de "Obra reunida". E não é para menos. Este livro abrange os quatro romances de Campos de Carvalho, um dos maiores nomes da literatura brasileira contemporânea.

É claro, muitos vão torcer o nariz: "Campos de Carvalho?" Afinal, após 30 anos sem publicar nada, o escritor mineiro, nascido em 1916, é hoje um ilustre desconhecido para uma geração inteira, "fora das montras das livrarias", como ressalta Jorge Amado no prefácio da obra.

Para preencher essa lacuna, o livro - que será lançado pela José Olympio na próxima segunda-feira - reúne "A lua vem da Ásia" (1956), "Vaca de nariz sutil (1961), "A chuva imóvel (1963) e O púcaro búlgaro (1964), quatro histórias que renovaram a literatura brasileira, trazendo à tona um estilo requintado, fluente e recheado de humor fino e mordaz.

Atualmente, o escritor e jornalista Campos de Carvalho - que trabalhou em O Estado de São Paulo e colaborou com O Pasquim - vive em São Paulo com a esposa, como procurador aposentado. Durante três décadas teve seus textos divulgados apenas entre leitores fiéis, através de cópias. Porém, por motivos de saúde, como ele mesmo diz, parou de escrever. Uma pena.

Já no primeiro romance, "A lua vem da Ásia", percebe-se o estilo original e vigoroso do autor, pontuado pela narração em primeira pessoa das observações do personagem Astrogildo, quarto nome de quem se chamou Adílson, Heitor e Ruy Barbo. Astrogildo acredita que vive em um hotel, depois pensa que é um campo de concentração. Por fim, reconhece que está mesmo em um hospício.

Órfão de mãe viva

"Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa - e qual defesa seria mais legítima?", pergunta o personagem logo no início do texto. A falta de lógica acompanha a vida e as lembranças de Astrogildo por todos os lugares em que imagina ter passado: Paris, Portugal, Sumatra, Nova Iorque e muitos outros. Até em Cochabamba, onde ganha um concurso para coveiro - com contrato para dois anos e direito a dormir no cemitério. Perde o emprego logo depois, por violar as sepulturas.

O personagem convive com os tipos mais inusitados, como o artista de cinema Heliodoro Papanatas, o príncipe Danilo e sua mãe, a qual não reconhece. Assim, a vende, por três milhões de florins, ao estudante Vinícius. "E com isso fiquei sendo o único órfão do mundo que ainda tem mãe viva".

As situações absurdas que Astrogildo vive, porém, realçam aspectos profundos de frieza e indiferença, tão comuns entre as pessoas. A imaginação fértil do louco se confunde com a própria realidade e suas pressões diárias e sufocantes.

A falta de liberdade - realçada por muros altos e choques elétricos - se alia à desconfiança irresoluta de tudo e de todos, até de si mesmo. As letras irônicas e sutis de Campos de Carvalho às vezes escondem uma realidade febril, que permeia a vida do personagem e deságua em seu suicídio, resultado da obsessão voraz pela morte. "A morte de um mosquito é tão importante quanto a minha própria morte, digo isso sem falsa modéstia". A frase está na seção necrolófica da Times, única pessoa com quem mantinha contato - embora jamais obtivesse resposta.

Como bem frisa no início do livro o estudioso de Campos de Carvalho, Carlos Felipe Moisés, "seus romances não formam propriamente uma tetralogia, mas guardam entre si alguns pontos de contato". Entre os quais, a narração em primeira pessoa e a ironia machadiana, que reaparecem em "Vaca de nariz sutil", através de frases bem construídas, tão inteligentes quanto imprevistas. "Meu companheiro tem, quando menos, a virtude da discrição: não fora ele surdo-mudo".

Imprevistos, aliás, são os momentos por que passa o personagem principal, um ex-combatente que vive com um surdo-mudo e passa a história questionando a vida e suas nuances.

As situações vividas por ele são realçadas por uma filosofia que reflete bem seu estado de profunda amargura diante de uma existência angustiante. "Um homem só, ou vira anarquista, ou vira louco. Louco não vira, já é."

A construção das frases, no texto de Campos de Carvalho, é resultado de um minucioso trabalho, feito com tanto requinte que a leitura é interrompida diversas vezes por frases que dão o que pensar. "Pago a pensão com a pensão que o Estado me paga pelo meu estado". Embora a perturbação moral do ex-combatente seja flagrante desde o início, esses admiráveis trechos filosóficos nos colocam em perfeita identidade com o personagem.

Como no livro anterior, o autor não faz uma dicotomia pura e simples, do tipo: normais de um lado, anormais do outro. Certos valores se confundem, numa mistura perplexa e envolvente. "Eu estava bêbado, portanto lúcido". Os constantes atritos do ex-combatente com o ambiente que o cerca servem de pano de fundo para questionamentos mais amplos, como a negação completa de instituições e condutas ditas normais. "Como é difícil falar com essa gente, parece que falam uma linguagem que eles mesmos não entendem."

Campos de Carvalho também usa a narrativa em primeira pessoa nos dois últimos romances. Em "A chuva imóvel", o humor ferino - dominante nas duas primeiras histórias - cede lugar a uma morbidez ostensiva. A morte novamente entra em cena quando o personagem principal, André Medeiros, perde o irmão e o pai. Passa então a manter uma relação quase incestuosa com a irmã gêmea, Andréa.

Por isso odeia o chefe, também marido de Andréa. "A verdade é que já nascemos órfãos, todos. Mas isso eu não digo". Uma crise existencial constante toma conta de Medeiros, que entende a vida como um fardo pesado, um permanente atrito consigo mesmo - a vítima mais fraca que encontrou. "Este mau cheiro é meu, trago-o comigo, sempre o trouxe."

Uma divagação em torno do nada, do vazio que abarca todo o sentido da vida. E qual o sentido? No caminho tortuoso de Medeiros, a vida se resume no inconformismo, apenas à espera da morte. Que apesar de tudo não elimina por completo a lucidez permanente do personagem. "Mesmo morto, continuarei dando meu testemunho de morto."

No último livro, "O púcaro búlgaro", a dedicatória diz tudo. Os homenageados são aqueles que "tentaram ou conseguiram atingir as regiões mais inatingíveis deste ou qualquer outro planeta." Regiões como a Atlântida, a Melanésia, o mar Cáspio e...as embocaduras do Fellatio e do Cunnilingus.

"O púcaro búlgaro"


Por aí se percebe o retorno do humor, característica marcante nos dois primeiros livros e relegado, no terceiro, a um clima bem mais soturno. Nesse último romance, o enredo é tão absurdo quanto envolvente é o texto. A história do sujeito que tenta descobrir se a Bulgária existe tem origem numa explicação necessária. "Se a Bulgária existe, então a cidade de Sófia terá que fatalmente existir."

A partir dessa constatação "fundamental" para a compreensão da história, o romance se desenvolve em torno do grupo que planeja a tão almejada viagem - que inclui inclusive um professor especializado em bulgarologia.

Os conhecimentos do professor são tão amplos que o autor, assumindo o papel de personagem, lhe interroga com questão profundas: "Professor, e como se explica que num bairro como Copacabana, onde há as mulheres mais lindas do mundo, dêem tantos veados?"

Do início ao fim, frases hilariantes e situações às vezes grotescas compõem a atmosfera de "O púcaro búlgaro". Até mesmo quando o sonho da heróica aventura termina numa rodada de pôquer. Talvez São Prepúcio, padroeiro dos bulgarólogos - conforme afirma o texto - não tenha dado a ajuda necessária.

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