quinta-feira, 29 de maio de 2008

NO QUINTAL DE JACAREPAGUÁ


(Publicado no caderno "Idéias", do "Jornal do Brasil", em 24 de agosto de 1996)

A Barra da Tijuca abriga a sociedade emergente que criou os seus próprios símbolos de status

Os emergentes da Barra
- Márcia Cezimbra e Elizabeth Orsini - Relume Dumará/Rio Arte, 104 páginas - R$ 12

Foi há dois anos, após uma badalada festa de arromba que reuniu mais de 400 mulheres no Hotel Caesar Park, em Ipanema, que eles surgiram para a vida social carioca. Desde então, vêm ocupando no melhor estilo "falem mal, mas falem de mim" espaços crescentes na mídia impressa, falada e sussurrada. Fenômeno social ou não, o que importa é que os emergentes da Barra acabam de ganhar um livro só para eles. E se as jornalistas Márcia Cezimbra e Elizabeth Orsini caem às vezes num certo estilo "gente que faz", a verdade é que o livro mostra que nossa vã filosofia barata sequer desconfia que no reino da Barra da Tijuca há coisas muito mais ocultas do que helicópteros, condomínios fechados e viagens a Miami.

De uma restinga "virgem e lamacenta", o livro revela todas a transformações ocorridas na região desde o século 16 até hoje, quando apenas três grandes proprietários dividem entre si a riqueza nababesca das terras da Barra. Curioso é observar como a disputa pela terra na região já atravessa os séculos, envolvendo intermináveis batalhas jurídicas e personagens típicos de um bang-bang à italiana. Antes de chegar propriamente aos emergentes, as autoras mostram como cada metro quadrado do local já passou de mão em mão com a rapidez de uma disputada prova de revezamento, e que nesse toma-lá-dá-cá já teve muita gente dormindo latifundiária e acordando sem-terra.

O preâmbulo histórico revela ainda a condição anterior da hoje poderosa Barra da Tijuca como um singelo "quintal de Jacarepaguá". A pesquisa vai fundo nas origens dos nomes das pequenas regiões que compõem o imenso bairro de Jacarepaguá, alguns derivados de imaginativas corruptelas, como a do antigo dono de engenhos Visconde de Asseca, que originou o nome da hoje Praça Seca.

Jacarepaguá, aliás, é a origem de muitos dos atuais emergentes, entre eles Eder Meneghini, arquiteto de dez entre dez emergentes, e que algumas vezes figura como um autêntico co-autor do livro, tal a intimidade com que fala de ilustres moradores da Barra, como Carlos Alberto Parreira, Zico, o senador Ney Suassuna (aquele que trocou sopapos com ACM) e a mais badalada de todas, Vera Loyola, que não é de muita cerimônia: "Se as senhoras da sociedade se sentem diminuídas, eu até peço desculpas, mas agora o sucesso é meu. Todo mundo tem o seu momento, mas agora o sucesso é meu".

Vera é uma das poucas emergentes que já nasceram em berço de ouro. A origem dos demais, na maioria, é de famílias humildes do Nordeste e dos subúrbios do Rio. Pessoas que hoje, donas de empresas que os pais e avós construiram, escolheram como reduto a única região do Rio que ainda sustenta um crescimento horizontal. É o que diz o livro, que além de revelar detalhes da vida íntima de figuras constantes nas colunas sociais ainda nos fornece momentos de pura intenção poética, como fez o príncipe D. João de Orleans e Bragança, ao definir a região: "Lembra Brasília, que não tem esquina, mas tem alma".

D. João não mora na Barra. Mas Ney Suassuna mora. E o senador paraibano não faz da sutileza o seu forte (até porque não tem sangue azul) e explica do seu modo a razão pela qual trocou os carros importados, uma mania na Barra, pelos modelos nacionais. Reserva de mercado? Talvez. Mas a razão mais direta pela qual o senador largou de vez a Mercedez importada, que usava há dez anos e trocava de dois em dois, foi quando, em plena Avenida Presidente Vargas, em frente à Central do Brasil, "um horror de negão cuspiu no carro gritando ladrão, ladrão. Uma vez me jogaram um objeto em Copacabana. Outra vez fui ao Teatro Municipal e me cuspiram o carro todo". Ponto para a carroça brasileira, como um ilustre emergente de Miami definiu certa vez os modelos nacionais.

Mas entre nacionais e importados, o livro mostra que os emergentes não são de ficar muito com os pés no chão. O tráfego aéreo revela que os angustiantes tapumes espalhados pela cidade há muito deixaram de ser obstáculos para os moradores da região. Condomínios luxuosos, como o Golden Green, onde Romário possui uma cobertura, já contam com heliportos. Lá embaixo, as limusines também se espalham pelo bairro. "Sai mais barato que um táxi, gente", justifica Vera Loyola.

Em meio a frases emblemáticas ("o avesso de um emergido é um indigente"; "emergente é todo o Brasil"), o ex-subprefeito da Barra e ex-morador do condomínio Palm Springs, Eduardo Paes, dispara, sobre o estilo de vida dos emergentes: "É muito provinciano, moralista, e o isolamento em condomínios só faz reforçar o apego aos valores tradicionais".

A indiferença da geração condomínio pela história da cidade também é ressaltada por ele: "Se soltarem um jovem destes na Praça 15 ele não sabe nem o que é o Paço Imperial, quem viveu lá e o que se fez ali". Mas, cá entre nós, Eduardo, se o livro já explica que "o primeiro sintoma da condição de emergente é um sorriso solar nos lábios e uma aura de alto astral"...bem, seja lá o que quer dizer isso, para que complicar?

terça-feira, 13 de maio de 2008

O AMARGO SONHO AMERICANO


(Publicado no caderno "Idéias", do "Jornal do Brasil", em 27 de julho de 1996)

Com ironia e muito lugar-comum, Tom Robbins retrata frustações dos EUA com seu ´way of life´

Quase dormindo de touca
- Tom Robbins - Tradução de Luiz A. de Araújo - Best Seller, 372 páginas - R$ 25

É difícil iniciar uma resenha sobre um livro tão debochado como Quase dormindo de touca, de Tom Robbins. Afinal, para um escritor que conta com algumas veias irônicas, um mínimo de criatividade e vive numa sociedade que, no máximo, ainda olha para o umbigo de vez em quando, o sarcasmo se torna um ingrediente irresistível. Está certo que Robbins apele, muitas vezes, para um vocabulário que deixaria ruborizado qualquer fã do Costinha, mas a verdadeira catástrofe burguesa que ele descreve após um crack na Bolsa americana reserva uma extensa série de situações cômicas e frases espirituosas por todo o livro.

Apesar da ironia desvelada que acompanha toda a trama – “Se fosse ser pago por um trabalho que a gente não sabe fazer direito, a metade do país estaria na cadeia” -, Robbins tempera a história com boas pitadas da frustração de grande parcela dos americanos com o seu tão decantado way of life, um sistema essencialmente democrático, que reserva espaço tanto para déficit público e carros japoneses, como para uma classe privilegiada cada vez mais indisposta a olhar para os crescentes problemas sociais do país.

No caso, a turma aí está bem representada por Gwendolin Mati, uma corretora tão incompetente quanto arrogante e que, a princípio, leva seus clientes à miséria após o crack. Gwendolin acredita fielmente que “o sonho americano está desaparecendo por culpa dos que nunca sonharam”, uma concepção bem patriótica, ainda mais levando em consideração que os desvairados sonhos do Tio Sam costumam originar amargos pesadelos para muita gente.

Como o desastre financeiro ocorre na véspera do feriado de Sexta-feira Santa, a trama toda se baseia na expectativa da redentora segunda-feira, que poderá trazer o último fio de esperança para milhões de miseráveis emergentes. Aliado a isso, Robbins incrementa ao drama da pobre criatura mais dois curiosos incidentes. Primeiro, desaparece André, o macaco francês do namorado de Gwendolin, um primata que tem o péssimo hábito de surrupiar jóias de grã-finas descuidadas. Logo depois, quem toma “chá de sumiço” é a conselheira da corretora, Q-Jo Huffington, uma taróloga adivinhona de 150 quilos que dá um dos inevitáveis toques bizarros à história.

O autor trata Gwendolin por você, o que, embora não deixe de causar um certo interesse à estrutura narrativa, em certos momentos chega a ser excessivamente intimista, dando ao texto a dimensão nada louvável de um folhetim daqueles bem “fuxiqueiros”. Por outro lado, Robbins teve a feliz idéia de dividir os capítulos por horários, o que valoriza cada hora do angustiante fim de semana da protagonista e seus infelizes clientes.

Entre altos e baixos, o livro mantém o interesse não apenas pela tão sonhada segunda-feira, mas também pelo sumiço dos dois curiosos personagens já citados e por constantes e impiedosas alfinetadas a um sistema social e econômico que continua seguindo ladeira abaixo sem freios.

Há comentários que resumem bem o pensamento do autor, como o que antecede a um discurso presidencial, onde “depois de limpar a garganta e ajustar a expressão facial, o presidente está em condições de se dirigir à cada vez mais reduzida parcela da população que não se dedica a pedir esmola, fumar crack ou jogar boliche”.

O exótico também ganha espaço na trama e envolve uma enigmática carta de tarô e misteriosas viagens ao Oriente. Tudo, é claro, girando em torno da protagonista, que se envolve com o megaespeculador (termo tão familiar) Larry Diamond, um visionário pornográfico que considera o emprego um dos maiores males da humanidade. “No contexto da História, nunca foram mais que um modismo passageiro”.

Apesar da aparente desarmonia entre situações e personagens, Robbins dá uma boa estrutura ao romance. Mas a ironia exagerada – “Joga uma moeda a uma mulher sem braço, que a apara entre os seios” – ou o excesso de frases de efeito diluem um pouco o interesse. Como ler, sem um remédio para enjôo por perto, umas dez frases como essa: “Imediatamente, os raios de sol, com máquinas fotográficas penduradas no pescoço, fazem fila para entrar em seu umbigo?” O pior é que tem.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

AS INTRIGAS DA ACADEMIA


(Publicado no caderno "Idéias", do "Jornal do Brasil", em 20 de julho de 1996)

Sátira expõe o cotidiano mesquinho e divertido de universidade rural americana em plena era Reagan

Muu
- Jane Smiley - Tradução de Roberto Grey - Rocco, 385 páginas - R$ 37,50

Depois de percorrer as 385 páginas de Muu, a primeira imagem que vem à cabeça é a daquele maratonista que consegue enfim completar a estafante prova em 489º lugar, com a língua até a cintura e suando em bicas. Se Jane Smiley tivesse reduzido seu livro para umas, digamos, 200 páginas, teria despertado, com muito mais ênfase, a atenção para o que Muu tem de melhor: a sátira corrosiva do dia-a-dia de uma universidade rural do meio-oeste americano em plena era Reagan, com toda a série de intrigas e disputas, quase nunca leais, envolvendo personagens ávidos por interesses que passariam longe de qualquer comissão de ética e disciplina.

A autora perde muito tempo, no entanto, em detalhar certos trabalhos de cultivo do solo, o funcionamento de algumas engenhocas ou, então, as nuances burocráticas de entediantes departamentos da universidade, que agem como verdadeiros "quebra-molas" no ritmo da história. Smiley se dá muito melhor, por exemplo, na crítica debochada que faz, não apenas do cotidiano da universidade ou do já meio capenga sistema educacional americano, mas também de qualquer organização de grande porte que permita, por meios não tão legais assim, a obtenção de duas palavras mágicas em qualquer esfera de poder: fama e dinheiro.

Entre os que lutam por um lugar ao sol está o Dr. Lionel Gift, autor de frases que ilustram bem sua personalidade, como a que diz que "o caminho mais sábio para o homos economicus era cultivar a indiferença". O Dr. Gift é autor de um projeto de mineração encomendado para uma poderosa indústria nacional, que, por sua vez, reservou generosos benefícios para a universidade. Até aí tudo bem, se o tal projeto não colocasse sob risco de destruíção total a última floresta virgem do planeta, na Costa Rica.

Entre os muitos desafetos que a ambição desmedida do Dr. Gift gera está o Diretor ´X´, um homem atormentado pela queda do comunismo e que, entre outras profundas reflexões, imagina o Natal como "uma celebração permitida da voracidade". O ódio do Diretor ´X´ pelo Dr. Gift e pelo decano da universidade, Nils Harstad, só encontra paralelo em sua paixão pela professora Cecília, uma costarriquenha criada em Los Angeles. Sua figura provoca, na já maior desregulada cabela do Diretor ´X´, uma singela identificação com a ameaçada floresta virgem da Costa Rica.

Este tipo de relacionamento, seja de amor, ódio, ou obsessão, entre os principais personagens é que dá ritmo à história, apesar dos "quebra-molas". Ele chega, muitas vezes, às vias de fato, como no capítulo "Quem está na cama com quem", que dá uma arrumada geral na conturbada vida íntima dos personagens.

Logo no início do texto, no entanto, há um certo clima de Porky´s contra-ataca no ar, que envolve alguns estudantes recém-chegados no campus e ainda confusos em se adequarem aos minúsculos quartos e aos parceiros de ocasião. Alguns desses estudantes acabam ficando mesmo é sem saber o que estão fazendo numa história onde a temperatura média gira em torno de 20 graus abaixo de zero e, entre as principais distrações locais, incluem-se a criação de porcos e a invenção de máquinas agrícolas.

Como é o caso de Loren Stroop, um típico americano rosado do meio-oeste e que inventa a tal máquina que pode revolucionar a agricultura americana e, conseqüentemente, trazer muitos recursos à universidadse, envolvida sempre com cortes orçamentários. Embora ninguém sequer desconfie da maravilhosa invenção de Stroop - apesar de seus desmedidos esforços em apresentar as plantas (que ninguém sabe qual o lado de cima ou de baixo) - ele só anda com coletes à prova de balas, uma garantia contra supostos surrupiadores de projetos revolucionários alheios. E, convenhamos, indumentária indispensável num país onde brotam serial killers de tudo que é canto.

Mas se a idéia da autora é dar a Stroop uma aura de excêntrico, pode-se dizer, pelo contrário, que ele é um dos personagens mais humanos e normais do livro, se é que as duas categorias são compatíveis. Em meio a corruptos carreiristas de todos os tipos, o homem que vive com medo da CIA e do FBI (e quem não tem?) é um poço de dignidade, cuja grandeza só encontra paralelo em Earl Butz, o olhar crítico do livro, que assiste às intempéries que assolam o meio acadêmico com um relativo distanciamento.

As aparições de Butz costumam vir permeadas de uma certa melancolia e desilusão diante da vida e do rumo que a universidade tomou. São os trechos mais reflexivos do livro e seriam muito mais, talvez, se Earl Butz não fosse literalmente um porco na engorda e, como diz o pórtico de sua pocilga - "cresça ou desapareça -, cada dia mais preocupado com os destinos da universidade.