O PARAGUAI E SUA TRISTE HISTÓRIA ENTRE SONHOS, DELÍRIOS E FANTASIAS
(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 24 de março de 2001)
Roa Bastos, que participou da guerra do Chaco, tem o estilo do desespero
Contravida, de Augusto Roa Bastos. Tradução de Jocely Vianna Baptista. Ediouro, 208 páginas. R$ 19
“O processo”, de Kafka, e “O estrangeiro”, de Camus, além de serem duas obras-primas, têm em comum a primeira frase bombástica, capaz de atrair o leitor mais preguiçoso ou desinteressado. Lembrando a velha cautela de se guardar as devidas proporções, “Contravida” também faz no início um convite, impregnado de pessimismo, mas que logo se revela uma profusão de metáforas das mais interessantes: “A primeira coisa que percebi de meu corpo foi o fedor de carniça”.
Personagem procura o seu
passado e o do país
As semelhanças param aí, pois o bom livro do paraguaio Augusto Roa Bastos, prêmio Cervantes de 1989, contém boas doses da chamada literatura fantástica, característica ou calcanhar-de-aquiles de nove em cada dez autores latino-americanos. Mas antes de se entregar a delírios e fantasias impregnados de saudosismo, o protagonista da história foge da prisão e, através da viagem em um trem “matusalênico”, passa a limpo parte da história do país, semelhante à de quase todos deste lado do sul do Equador. “Por mais voltas que se dê às palavras, sempre se escreve a mesma história”.
Bastos, que lutou na inacreditável guerra do Chaco, entre Paraguai e Bolívia, molda seu estilo em parágrafos curtíssimos, em boa parte aforismos de concisão e desespero: “Não há nada mais feio que a velhice infame. Feiúra feíssima”. O seu personagem, único sobrevivente de um massacre de presos, busca a origem, a casa dos pais, que pode ser o passado do próprio país, ao qual Bastos dá uma dignidade emocionante.
“...A infância não se perde. Nós sempre a levamos dentro de nós. Como você quer voltar para um lugar de onde nunca saiu?” O folclore, os dialetos da língua guarani, a humildade resignada do camponês e um orgulho que desafia estereótipos como aqueles que só relacionam o país ao contrabando de produtos eletrônicos estão por todas as páginas e lugarejos, principalmente na figura de Gaspar Cristaldo, uma espécie de Policarpo Quaresma sem lugar no tempo e no espaço, que constrói uma cidade invisível e se envolve na revolta dos personagens de seus livros. “Este é o lado mau de escrever histórias fingidas. As palavras se afastam da gente e se tornam mentirosas”. Mas se a culpa é delas, há que perdoá-las, pois as palavras têm o poder de sublimar a rotineira paisagem através do lado lírico das metáforas: “A montanha é o horizonte no alto”.
Busca de raízes tira a
linearidade do texto
Neste ponto, a armadilha do início já cumpriu o seu papel, o de fazer o leitor esquecer o que é uma história linear, com início, meio e fim, pois essa busca pelas raízes, constante em todo o livro, é algo impossível de se medir por parâmetros e técnicas muito formais. Dá para esquecer, por exemplo, dos torturadores que estão no trem, em missão especial, e da mulher com o macaco libidinoso, que tudo leva a crer ser uma informante da polícia. A fantasia, o delírio, o sonho tornam a história muito muito mais abrangente do que poderia ser, dando a ela um sentido talvez tão digno como o que busca Cristaldo, o homem que acredita na sentença de que nascemos todos os dias e morremos ao anoitecer.
Neste caso, a existência perde o sentido de luta contra a morte e o próprio destino do fugitivo, apaixonado pelas idéias de Cristaldo, vai revelar isso. O professor manda os estudantes construírem um columbário, o mausoléu onde os romanos colocavam urnas e vasos funerários. Mas seu objetivo é exatamente o contrário: ele o constrói para as pessoas vivas, a fim de que a idéia de morte fosse desterrada para sempre. No lugar de um corpo, uma flor ou uma foto, por exemplo. O importante era preencher o que seria um local fúnebre com os desejos dos vivos.
Os estudantes que o rodeavam se consideravam cúmplices da sabedoria de Cristaldo, um apaixonado por livros e que vivia no limite entre realidade e ficção, ao expor seus personagens para a vida. Uma de suas frases poderia até servir para uma campanha de incentivo à leitura, um pouco grosseira, é verdade, mas provavelmente eficaz: "Não há nada que humilhe tanto os ignorantes como um livro".