segunda-feira, 31 de março de 2008

UM JEITO AMERICANO DE SER


(Publicado no caderno ´Idéias´, do ´Jornal do Brasil´, em nove de março de 1996)

Personagens de cidade da Flórida provam ser material pobre para dar substância a um romance

A lua dos namorados
- Alice Hoffman - Tradução de Aulyde Soares Rodrigues - Rocco - 200 páginas - R$ 24,75

Três anos depois de sua publicação nos EUA, A lua dos namorados, de Alice Hoffman, chega às livrarias brasileiras com um currículo invejável, que inclui críticas e mais críticas generosas despejadas nos principais suplementos literários americanos onde Hoffman é descrita como “uma das grandes escritoras da nossa era”. Tanta expectativa, no entanto, é desfeita após as quase 200 páginas do romance, que peca por uma narrativa arrastada e personagens extremamente problemáticos. Pena que a maioria de seus problemas não interesse nem às mães deles.

Os bons momentos do livro, que giram em torno daquele tradicional homicídio sem pistas, não apresentam uma continuidade à altura. É como um jogo de futebol que começa movimentado, cheio de gols e expulsões, e de repente algum botinudo isola a bola para a arquibancada. No caso, a “bola isolada” é o detalhamento excessivo da vida na pequena cidade de Verity, Flórida, onde mesmo lances pitorescos como cascavéis nas cabines telefônicas e tartarugas nas principais ruas e estradas não dizem o que vieram fazer na história.
A trama se passa no “terrível” mês de maio, quando os moradores de Verity costumam ficar “levemente insanos” e um calor incessante se encarrega de queimar os poucos miolos restantes. Embora a insanidade seja justificada pelo calendário, as principais personagens são típicas espécies normais do american way of life, encontradas facilmente em qualquer esquina das terras do Tio Sam: um adolescente problemático, uma mulher divorciada e o típico policial neurótico e de passado enigmático.

Feita a salada, é hora de mexer os molhos: problemas de relacionamento, calor sufocante, jacarés pelas estradas e haja calça jeans, hambúrgueres e latinhas de Coca-Cola. Sobre espaço até para uma alma que permanece presa à árvore onde morreu, obrigada a suportar chatos de galocha de todas as idades e tamanhos.

Como em um prédio da Zona Sul carioca, ninguém se conhece no livro de Alice Hoffman. Ou melhor, trocam palavras, quase tão frívolas quanto suas vidas. O já mencionado homicídio serve ao menos para aproximar alguns corações e mentes angustiados. Só que é uma aproximação meio artificial, como a do policial neurótico e a mulher divorciada, justificado apenas por estarem no mês de maio. Da mesma forma, o período é responsável por uma incrível reviravolta na vida do adolescente problemático, que passa de uma condição de quase marginal a protetor de uma doce e meiga criancinha.

A tentativa desesperada da mãe em defender o filho de uma possível acusação do crime, e que poderia render uns bons capítulos de suspense, cai no vazio, graças ao já citado policial, Julian Cash, que se envolve com ela e dá um bom crédito de confiança ao garotão. Abandonado pela mãe, quase morto ao nascer, dono de uma cicatriz horrível na testa e culpado pela morte do melhor amigo, Cash tinha tudo para assumir a identidade de um serial killer de respeito, sempre disposto a soltar seus cachorros assassinos no pescoço de algum meliante.

Além da estranha personalidade do policial, outros trechos do romance poderiam ser muito mais envolventes, como a própria alma presa à árvore ou as circunstâncias que envolveram o homicídio. O desfecho do crime, aliás, que seria o clímax de toda a história, é resolvido de forma tão rápida e sem graça como piada de Billy Cristal na noite do Oscar.

Por outro lado, na descrição de um corte de cabelo ou em comentários sobre o tempo, Alice Hoffman gasta um tempo exagerado, que faria bocejar até as tartarugas marinhas que circulam pelas estradas de Verity em maio. No mais, é aquele tratado pormenorizado dos “louváveis” hábitos e costumes americanos, já exaustivamente divulgados em minisséries enlatadas e amplas reportagens nos “Fantásticos” da vida. Fica a impressão de que os dramas do “terrível” mês de maio em Verity não são suficientes para se preencher um romance. Pelo menos, para quem está acostumado com os tapumes do Rio Cidade, ruas com jacarés, tartarugas e cascavéis já não causam tanto espanto assim.

quinta-feira, 6 de março de 2008

CENAS DO ´NONSENSE´ CARIOCA

(Publicado no caderno "Idéias", do "Jornal do Brasil", em 17 de fevereiro de 1996)

Irreverência marca romance policial em que matadores, jornalistas e anjos cruzam seus destinos

Anjo caído
, de Rogério Durst. Xenon, 144 páginas, R$ 12


Rotular o livro Anjo caído, do jornalista Rogério Durst, como romance policial seria arriscado. Tão arriscado quanto o dia-a-dia do personagem Adão, que descobre os planos de sabotagem na Usina Nuclear de Parati e tem sua vida ameaçada por Carne de Sol, um excêntrico matador de aluguel que descreve o último olhar de suas vítimas em grandes cadernos universitários. Numa trama absurda, o autor se esconde sob o olhar onipresente de Gabriel, não o pensador e sim o arcanjo, rebaixado a motorista de táxi.

Rogério Durst traz para o livro a irreverência que caracteriza seus textos como crítico de cinema. Vale lembrar que, até meados dos anos 80, a ironia e o bom humor eram ilustres desconhecidos das críticas feitas na sala escura. A influência da tela grande é flagrante em Anjo caído. O texto foge apavorado de qualquer linguagem linear e se refugia em blocos de imagens, takes dispersos que se concentram para um grande final, onde todos se encontram e tudo acontece.

Gabriel, como ser espiritual e enviado dos céus, é a câmera que acompanha os tipos mais estranhos pelas ruas, bares e principalmente camas do Rio de Janeiro. E se Rogério Durst não chegou a ter mil idéias na cabeça ao escrever o livro, é um milagre que alguns de seus personagens consigam articular duas palavras seguidas.

Paio na banha, por exemplo, é um matador aposentado que já passa dos 80 e se realizou como dono de botequim no Rio, depois de muito presunto nas costas. Sua filosofia de vida, ou de morte, é no mínimo curiosa. Num ambiente onde se vende carne de todo tipo, defumada, processada e temperada, o homem que guarda dedos de defunto em salmoura, “apenas como souvenir”, medita sobre a tentação que um preciso corte no pescoço alheio lhe causa: “Não consigo viver sem isso, e passar o facão numa mortadela já me consola”.

O típico jornalista frustrado, de salário baixo e sonhos altos, ganha corpo na figura esquálida de Sérgio Ramos. Aos 35 anos, tendo como único patrimônio um fusca velho, Sérgio vive um tumultuado romance com a mulata Solange, que ganha a vida rebolando os quadris para gringo ver.

A obsessão do jornalista em ganhar fama e fortuna é que dá fôlego à história. Isso até que a trama se estilhace em mil pedaços e os personagens esquisitões de Rogério Durst abram alas numa frenética marcha de crioulo doido, como sugerem os nomes dos capítulos, todos títulos de antigos sucessos carnavalescos.

Os constantes encontros de Sérgio com Solange revelam o que há de mais romântico no livro. É certo que José de Alencar e suas damas inatingíveis ficariam um pouco ruborizados com as lembranças do jornalista: “Sérgio se lembrava perfeitamente, e com certa constância, dos grãos de arroz saindo dos lábios lubrificados com gordura.

A etiqueta dos personagens de Rogério Durst pode ser considerada um mal menor, se comparada com um Rio de Janeiro de 97 homicídios diários. Enquanto o governador Eduardo E. Nigma reclama de campanhas de desestabilização promovidas pela mídia, os presos trabalham num inovador sistema de cooperativa para resolver o drama da superlotação nos presídios. Simplesmente "limparam da cela cinco prisioneiros menos populares, que foram mortos, esquartejados e jogados para fora”.

Essa fórmula pragmática de se resolver o destino dos presos também é usada para se definir o rumo da história. O narrador celeste tem lá seus recursos de estilo – truques, como ele diz – e utiliza uma técnica tão disseminada no céu quanto na terra: o aparecimento de um misterioso personagem que vai desatar todos os nós de marinheiro que a trama carrega.

Como todo penetra de fim de história, este também carrega uma pasta repleta de documentos comprometedores, que complica de vez a vida de seres tão antagônicos como o dono da Usina de Parati, Anthony von Baumgarten, e o pastor da Igreja Cósmica do Arrependimento, Jimmy Stuart. Iluminado mesmo é o arcanjo Gabriel, ao definir bem o ambiente que o cerca: “Ninguém ali era muito diferente dos homens fedorentos, peludos e assustados que viemos civilizar há milênios.