quinta-feira, 6 de março de 2008

CENAS DO ´NONSENSE´ CARIOCA

(Publicado no caderno "Idéias", do "Jornal do Brasil", em 17 de fevereiro de 1996)

Irreverência marca romance policial em que matadores, jornalistas e anjos cruzam seus destinos

Anjo caído
, de Rogério Durst. Xenon, 144 páginas, R$ 12


Rotular o livro Anjo caído, do jornalista Rogério Durst, como romance policial seria arriscado. Tão arriscado quanto o dia-a-dia do personagem Adão, que descobre os planos de sabotagem na Usina Nuclear de Parati e tem sua vida ameaçada por Carne de Sol, um excêntrico matador de aluguel que descreve o último olhar de suas vítimas em grandes cadernos universitários. Numa trama absurda, o autor se esconde sob o olhar onipresente de Gabriel, não o pensador e sim o arcanjo, rebaixado a motorista de táxi.

Rogério Durst traz para o livro a irreverência que caracteriza seus textos como crítico de cinema. Vale lembrar que, até meados dos anos 80, a ironia e o bom humor eram ilustres desconhecidos das críticas feitas na sala escura. A influência da tela grande é flagrante em Anjo caído. O texto foge apavorado de qualquer linguagem linear e se refugia em blocos de imagens, takes dispersos que se concentram para um grande final, onde todos se encontram e tudo acontece.

Gabriel, como ser espiritual e enviado dos céus, é a câmera que acompanha os tipos mais estranhos pelas ruas, bares e principalmente camas do Rio de Janeiro. E se Rogério Durst não chegou a ter mil idéias na cabeça ao escrever o livro, é um milagre que alguns de seus personagens consigam articular duas palavras seguidas.

Paio na banha, por exemplo, é um matador aposentado que já passa dos 80 e se realizou como dono de botequim no Rio, depois de muito presunto nas costas. Sua filosofia de vida, ou de morte, é no mínimo curiosa. Num ambiente onde se vende carne de todo tipo, defumada, processada e temperada, o homem que guarda dedos de defunto em salmoura, “apenas como souvenir”, medita sobre a tentação que um preciso corte no pescoço alheio lhe causa: “Não consigo viver sem isso, e passar o facão numa mortadela já me consola”.

O típico jornalista frustrado, de salário baixo e sonhos altos, ganha corpo na figura esquálida de Sérgio Ramos. Aos 35 anos, tendo como único patrimônio um fusca velho, Sérgio vive um tumultuado romance com a mulata Solange, que ganha a vida rebolando os quadris para gringo ver.

A obsessão do jornalista em ganhar fama e fortuna é que dá fôlego à história. Isso até que a trama se estilhace em mil pedaços e os personagens esquisitões de Rogério Durst abram alas numa frenética marcha de crioulo doido, como sugerem os nomes dos capítulos, todos títulos de antigos sucessos carnavalescos.

Os constantes encontros de Sérgio com Solange revelam o que há de mais romântico no livro. É certo que José de Alencar e suas damas inatingíveis ficariam um pouco ruborizados com as lembranças do jornalista: “Sérgio se lembrava perfeitamente, e com certa constância, dos grãos de arroz saindo dos lábios lubrificados com gordura.

A etiqueta dos personagens de Rogério Durst pode ser considerada um mal menor, se comparada com um Rio de Janeiro de 97 homicídios diários. Enquanto o governador Eduardo E. Nigma reclama de campanhas de desestabilização promovidas pela mídia, os presos trabalham num inovador sistema de cooperativa para resolver o drama da superlotação nos presídios. Simplesmente "limparam da cela cinco prisioneiros menos populares, que foram mortos, esquartejados e jogados para fora”.

Essa fórmula pragmática de se resolver o destino dos presos também é usada para se definir o rumo da história. O narrador celeste tem lá seus recursos de estilo – truques, como ele diz – e utiliza uma técnica tão disseminada no céu quanto na terra: o aparecimento de um misterioso personagem que vai desatar todos os nós de marinheiro que a trama carrega.

Como todo penetra de fim de história, este também carrega uma pasta repleta de documentos comprometedores, que complica de vez a vida de seres tão antagônicos como o dono da Usina de Parati, Anthony von Baumgarten, e o pastor da Igreja Cósmica do Arrependimento, Jimmy Stuart. Iluminado mesmo é o arcanjo Gabriel, ao definir bem o ambiente que o cerca: “Ninguém ali era muito diferente dos homens fedorentos, peludos e assustados que viemos civilizar há milênios.

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