quinta-feira, 21 de maio de 2015

A COMÉDIA MUNDANA



("A comédia mundana", de Luiz Biajoni. Língua Geral. 480 páginas)


  Faz seis anos chegou às minhas mãos para fazer resenha, aqui mesmo neste espaço, um livro que estava dando o que falar. Publicado apenas no site do autor, os originais já percorriam com sucesso os corredores de algumas editoras. Mas ninguém publicava. O motivo? Talvez o seu título: "Sexo anal - uma novela marrom", de Luiz Biajoni.
  O livro, uma trama policial divertida e escrita no ritmo de um folhetim, mereceu uma avaliação elogiosa, apenas com algumas ressalvas que julguei fazer em relação à estrutura narrativa, mas ressaltando que a linguagem do livro fazia “O Doce Veneno do Escorpião”, de Bruna Surfistinha, parecer literatura infantil. Pelo que o próprio Bia, como o autor, morador da cidade paulista de Americana, é conhecido, a resenha acabou ajudando a afastar os falsos pudores e a obra abriu caminho para a carreira do escritor, bem representada nestas "três novelas policiais sacanas", que incluem o livro já citado e também os outros dois que lhe deram suquência: "Buceta - uma novela cor-de-rosa" e "Boquete - uma novela vermelha".
  Nesse período, Bia também escreveu os livros "Virgínia Berlim - uma experiência" e "Elvis & Madona", baseado no roteiro do filme de mesmo, um caso de amor entre uma lésbica e um travesti passado em Copacabana em meio a muito sexo e violência, temas que também atravessam estas comédias mundanas. Vários personagens transitam pelas três histórias, entre eles Assis, o jornalista "das antigas", investigativo e corajoso, sempre em busca de uma matéria para desvendar as falcatruas dos poderosos locais.
Capítulos curtos, muitas tramas acontecendo ao mesmo tempo, ritmo dinâmico, o texto de Bia não só "segura" o leitor como provoca boas risadas devido ao inusitado de boa parte das situações. No final, tudo se encaixa, em todos os sentidos, afinal Bia não utiliza sexo e violência em suas histórias de forma gratuita, apenas para chocar, e sim como elementos fundamentais na vida de personagens que vivem isso na maioria das vezes como elementos de poder, ou mesmo na profissão. Em meio a cirurgias de hemorroida ou de reconstituição de hímen, de pessoas que levam uma vida sexual secreta, de matadores que cumprem suas funções como se estivessem batendo o ponto na repartição, ou mesmo em meio à descrição de relações sexuais com uma naturalidade desconcertante, o autor também consegue inserir trechos de pura ternura e amor sincero, o que dá um equilíbrio bem interessante às histórias. "Levantou e abraçou e beijou os dois - o beijo de uma filha, o mais sincero e afetuoso que pode existir".
No pequeno universo criado pelo escritor, o que sobressai é a verossimilhança com o Brasil, o país que tem como seu principal mal esta chaga chamada corrupção, que faz de grandes empresários cúmplices do poder e da violência algo extremamente banal. "A sociedade está toda corrompida, mas ninguém quer que essa corrupção desapareça: é uma corrupção que faz bem a todos". No meio do humor escrachado e de muito sexo, percebe-se uma crítica contundente à forma como é feita a política, mas sem um pessimismo exagerado, pois alguns personagens tentam empunhar a bandeira da ética, mesmo que para isso sofram ameaças e atentados.
  Da mesma forma, Bia em nenhum momento abusa de clichês, apenas quando eles são necessários em momentos de humor. O retrato dos personagens é profundo. Assim o autor descreve com detalhes a rotina do matador de aluguel, que aguarda a lista de vítimas saboreando uma dobradinha com pururuca, dos profissionais do sexo, do delegado, da redação de um jornal, da prefeitura da cidade e das pessoas poderosas da cidade, e sempre dando características peculiares a personagens secundários, como o tímido Rafael, um policial que fica boa parte do tempo em casa arrumando sua coleção dos Beatles e se apaixona por Valéria, uma doce jornalista a quem ele oferece, um arroubo de romantismo, o único prato que sabe fazer, um miojo com manjericão desidratado e recheado com ervilhas em lata.





















segunda-feira, 18 de maio de 2015

A PRIMEIRA HISTÓRIA DO MUNDO


 ("A primeira história do mundo", de Alberto Mussa. Editora Record. 240 páginas)

            O primeiro assassinato ocorrido no Rio de Janeiro, no longínquo ano de 1567, quando a maior parte da cidade se encontrava no extinto Morro do Castelo, é o mote do último livro do carioca Alberto Mussa, autor premiado e traduzido para dez países e que aqui dá continuidade ao projeto, segundo ele "absurdo", de produzir uma espécie de compêndio mítico do Rio de Janeiro, que já rendeu os livros "O trono da rainha Jinga" e "O senhor do lado esquerdo".
         O crime propriamente dito, ou seja, o assassinato do serralheiro Francisco da Costa, encontrado com sete flechadas nas costas (e um ferimento nos rins, provavelmente de mais uma flechada) é o ponto de partida para uma aventura que não se limita à História do Rio de Janeiro em seus primeiros anos, mas também à mitologia indígena, tema que o autor já utilizou muito bem em outras obras e que justifica, inclusive, o título deste livro.
         As fontes documentais do assassinato, o primeiro registrado na cidade, são esparsas, sem contar que toda a estrutura jurídica e institucional do lugar ainda estava sendo montada e quem investigava era quem julgava e condenava. Desta forma, misturando ficção com fontes históricas primárias, o narrador vai conduzindo o leitor para as vidas (sempre repletas de fatos pitorescos naquela época de desbravamento de uma terra inóspita) dos dez suspeitos do caso, das testemunhas, do modo de vida dos primeiros habitantes da cidade e das primeiras batalhas pela conquista do litoral.
         O autor mergulha também na intensa mistura (inclusive sexual) de portugueses e indígenas que dariam à formação do Brasil talvez um aspecto único no mundo, tanto que o primeiro a encontrar o corpo da vítima, morta diante da mítica Casa de Pedra, foi o mameluco (mestiço de branco com índio) Simão Berquó, que também será um dos acusados.
         Como uma crônica de uma morte anunciada, para citar aqui Gabriel García Márquez, que nos deixou recentemente, o narrador já deixa bem claro, nas primeiras linhas, quem morreu, onde morreu, além de outras circunstâncias do crime, e que Jerônima Rodrigues, esposa de Francisco, parece ser a chave daquele mistério que assume proporções ainda maiores por se situar na terra bruta do início da ocupação da cidade, onde os muros da cidadela protegiam seus moradores dos perigos do mundo desconhecido, que tanto podiam surgir nas flechadas das tribos inimigas como em um ataque de onça, animal que assume um papel importante na mitologia tupi. Ali a realidade era hostil e a qualquer momento podia desaguar em violência. "Numa cidade onde há mais homens que mulheres, não pode haver virtude".
         A própria natureza dos dez acusados revela a imensa variedade nas origens daquela gente, entre nobres degredados, piratas franceses, perseguidos pela Inquisição, homens gananciosos e libidinosos, que se envolviam sem pudor com as nativas, experimentavam drogas alucinógenas e participam dos rituais indígenas (inclusive os antropófagos), um material riquíssimo para os tantos relatos de viajantes que estiveram na costa brasileira neste primeiro século de ocupação.
         No fim das contas, o que mais importa na narrativa acaba nem sendo o crime em si e sua correspondente investigação (ou devassa), e sim todas as circunstâncias das quais o narrador se apropria para apresentar um painel da vida brasileira do século XVI. Mas para quem quiser ver o livro também no seu aspecto de romance policial, alguns dos seus elementos clássicos estão lá, inclusive com citações a dois mestres do gênero, Edgar Allan Poe e Agatha Christie.    
         Alberto Mussa vai conduzindo o leitor a um final repleto de possibilidades, em uma narrativa que flui leve em meio a tantas informações, sejam reais ou fantasiosas, e estimula a imaginação ao nos levar a um Rio de Janeiro que se limitava a um espaço tão estreito, e a cujo maior símbolo, o Morro do Castelo, nem existe mais, demolido na década de 1920. Além disso, ele nos faz ver a História sob o ponto de vista também da gente da terra, dos nativos que aqui já estavam, com suas culturas, suas lendas (entre elas a das amazonas, as mulheres sem marido, sem dúvida a mais saborosa do livro), as muitas guerras e os rituais, além de um rico vocabulário, presente até hoje em boa parte dos nomes que encontramos no país. Não à toa o autor dedica o livro também "às mulheres anônimas da minha linhagem materna - mamelucas e índias de quem herdei o sangue e o Espírito Tutelar que sopra em meus ouvidos".