(Publicado no caderno "Prosa", do jornal "O Globo", em 10 de agosto de 2013)
Os Transparentes – Ondkaki – Companhia das
Letras – 408 páginas - R$ 46
Desde a guerra civil
que devastou o país que Angola vem apresentando ao mundo literário uma gama de
autores expressivos, donos de livros contundentes, que vão às raízes de um povo
sofrido pelo violento colonialismo português e muitos anos de guerra civil, mas
que não perde a esperança e o bom-humor, duas características das obras de gente
como Pepetela, Luandino Vieira, José Eduardo Agualusa e o mais jovem deles,
Ondjaki, nascido em 1977 e que após algumas bem-sucedidas incursões pela
literatura infanto-juvenil (como "AvóDezanove e o segredo soviético", da Companhia das Letrinhas, Prêmio FNLIJ de 2009 e Prêmio Jabuti, de 2010) lança "Os transparentes", retrato realista
e com muitas doses de irreverência de sua querida Luanda, uma cidade que
"fervia com a sua gente que vendia, que comprava para vender, que se
vendia para depois ir comprar e gente que se vendia sem voltar a conseguir
comprar".
O
estilo que o consagrou com diversos prêmios literários, inclusive no Brasil,
onde mora atualmente, está todo aí no texto leve, de diálogos ágeis e
personagens bem caracterizados numa poesia "disfarçada" de prosa e
diluída em várias situações do dia a dia da quente capital angolana. O
microcosmo é um prédio quase sempre às escuras, com um vazamento de água
crônico no primeiro andar e um cinema improvisado no terraço, o GaloCamões,
nome justificado pela presença distante e serena de um galo cego de um olho. É
deste prédio que saem os personagens que farão a história girar e é para lá que
tudo se dirige, principalmente o mirabolante projeto do corrupto governo de
buscar petróleo no instável subsolo da cidade-capital.
Ondjaki
nomeia seus personagens quase como arquétipos de um passado que se perdeu
diante da modernidade destruidora de tradições. Assim, MariaComForça,
VendedorDeConchas, CamaradaMudo, Cego, Carteiro, Ministro, ZéMesmo e
CienteDoGrã, entre tantos outros, tentam sobreviver das migalhas que sobram do
tal desenvolvimento econômico. Em alguns momentos, principalmente devido à
linguagem cheia de ginga e detalhes pitorescos, lembra o nosso grande João
Antônio, cujos personagens Malagueta, Perus e Bacanaço poderiam tranquilamente
ser moradores do prédio do Largo da Maianga e transitar pelas mesas de sinuca dos
“muquinfos” da capital de Angola.
Outra
referência inevitável da literatura brasileira que salta aos olhos aqui é Jorge
Amado, com seus pinguços a beber o dia inteiro nas biroscas de Ilhéus e a dizer
coisas espirituosas, semelhantes a figuras como
JoãoDevagar e o Esquerdista, frequentadores da BarcaDeNoé e sempre à
espreita de alguém com "cumbú" para pagar um trago. Outro traço de
identificação com o autor baiano é a religiosidade de personagens como a
AvóKunjikise, que fala "coisas adivinhadas e sabidas há muito" no seu
umbundu, a língua que para os que não a entendiam ela olhava bem nos olhos
quando falava.
Luanda,
em boa parte do livro, aliás, lembra bastante o Brasil, com sua burocracia e
corrupção desenfreadas, exclusão dos mais pobres, obras que beneficiam grandes
empresas e passam por cima do passado da cidade, o improviso e o jogo de
cintura para se conseguir as coisas e o consumismo exagerado de produtos como
"éme pê três e quatro" e "telemóveis de última geração com
serviços que ainda não eram oferecidos pela operadoras nacionais". Ondjaki
representa bem um povo que ainda sofre para buscar sua identidade e vive sob um
governo que anuncia, em rede nacional, com toda a pompa, que está cancelando o
próximo eclipse (!).
As
diversas situações criadas por ele na narrativa, que na segunda metade até
esbarram em um humor um pouco excessivo, vão caminhando para um final
delirante, com pitadas de literatura fantástica, principalmente sob a (pouca)
pele de Odonato, personagem que sofria de uma "desorganização de
saudades" e vai ficando literalmente transparente desde que deixara de
comer, "a vida libertou-me aos poucos do fardo da fome e da dor". A
devastação que a cidade sofre em suas entranhas pelas máquinas da Cipel
(Comissão Instaladora do Petróleo Encontrável em Luana) é a mesma que seus
moradores pobres sofrem todos os dias, restando, apesar do esforço em superar
os muitos problemas e levar a vida com um pouco de prazer, uma melancolia não
disfarçada, mesmo que o autor a sublime com momentos do mais puro lirismo.