segunda-feira, 12 de agosto de 2013

RETRATO IRREVERENTE E LÍRICO DE LUANDA

(Publicado no caderno "Prosa", do jornal "O Globo", em 10 de agosto de 2013)

Os Transparentes – Ondkaki – Companhia das Letras – 408 páginas - R$ 46


           Desde a guerra civil que devastou o país que Angola vem apresentando ao mundo literário uma gama de autores expressivos, donos de livros contundentes, que vão às raízes de um povo sofrido pelo violento colonialismo português e muitos anos de guerra civil, mas que não perde a esperança e o bom-humor, duas características das obras de gente como Pepetela, Luandino Vieira, José Eduardo Agualusa e o mais jovem deles, Ondjaki, nascido em 1977 e que após algumas bem-sucedidas incursões pela literatura infanto-juvenil (como "AvóDezanove e o segredo soviético", da Companhia das Letrinhas, Prêmio FNLIJ de 2009 e Prêmio Jabuti, de 2010) lança "Os transparentes", retrato realista e com muitas doses de irreverência de sua querida Luanda, uma cidade que "fervia com a sua gente que vendia, que comprava para vender, que se vendia para depois ir comprar e gente que se vendia sem voltar a conseguir comprar".
         O estilo que o consagrou com diversos prêmios literários, inclusive no Brasil, onde mora atualmente, está todo aí no texto leve, de diálogos ágeis e personagens bem caracterizados numa poesia "disfarçada" de prosa e diluída em várias situações do dia a dia da quente capital angolana. O microcosmo é um prédio quase sempre às escuras, com um vazamento de água crônico no primeiro andar e um cinema improvisado no terraço, o GaloCamões, nome justificado pela presença distante e serena de um galo cego de um olho. É deste prédio que saem os personagens que farão a história girar e é para lá que tudo se dirige, principalmente o mirabolante projeto do corrupto governo de buscar petróleo no instável subsolo da cidade-capital.
         Ondjaki nomeia seus personagens quase como arquétipos de um passado que se perdeu diante da modernidade destruidora de tradições. Assim, MariaComForça, VendedorDeConchas, CamaradaMudo, Cego, Carteiro, Ministro, ZéMesmo e CienteDoGrã, entre tantos outros, tentam sobreviver das migalhas que sobram do tal desenvolvimento econômico. Em alguns momentos, principalmente devido à linguagem cheia de ginga e detalhes pitorescos, lembra o nosso grande João Antônio, cujos personagens Malagueta, Perus e Bacanaço poderiam tranquilamente ser moradores do prédio do Largo da Maianga e transitar pelas mesas de sinuca dos “muquinfos” da capital de Angola.
         Outra referência inevitável da literatura brasileira que salta aos olhos aqui é Jorge Amado, com seus pinguços a beber o dia inteiro nas biroscas de Ilhéus e a dizer coisas espirituosas, semelhantes a figuras como  JoãoDevagar e o Esquerdista, frequentadores da BarcaDeNoé e sempre à espreita de alguém com "cumbú" para pagar um trago. Outro traço de identificação com o autor baiano é a religiosidade de personagens como a AvóKunjikise, que fala "coisas adivinhadas e sabidas há muito" no seu umbundu, a língua que para os que não a entendiam ela olhava bem nos olhos quando falava.
         Luanda, em boa parte do livro, aliás, lembra bastante o Brasil, com sua burocracia e corrupção desenfreadas, exclusão dos mais pobres, obras que beneficiam grandes empresas e passam por cima do passado da cidade, o improviso e o jogo de cintura para se conseguir as coisas e o consumismo exagerado de produtos como "éme pê três e quatro" e "telemóveis de última geração com serviços que ainda não eram oferecidos pela operadoras nacionais". Ondjaki representa bem um povo que ainda sofre para buscar sua identidade e vive sob um governo que anuncia, em rede nacional, com toda a pompa, que está cancelando o próximo eclipse (!).
         As diversas situações criadas por ele na narrativa, que na segunda metade até esbarram em um humor um pouco excessivo, vão caminhando para um final delirante, com pitadas de literatura fantástica, principalmente sob a (pouca) pele de Odonato, personagem que sofria de uma "desorganização de saudades" e vai ficando literalmente transparente desde que deixara de comer, "a vida libertou-me aos poucos do fardo da fome e da dor". A devastação que a cidade sofre em suas entranhas pelas máquinas da Cipel (Comissão Instaladora do Petróleo Encontrável em Luana) é a mesma que seus moradores pobres sofrem todos os dias, restando, apesar do esforço em superar os muitos problemas e levar a vida com um pouco de prazer, uma melancolia não disfarçada, mesmo que o autor a sublime com momentos do mais puro lirismo.