quarta-feira, 5 de maio de 2010

ABBOTT, O MAIS BAIANO DOS INGLESES


(Publicado no caderno ´Prosa & Verso´, do jornal "O Globo", em 26 de abril de 2008)

A história do homem que se tornou figura central para a medicina no Brasil

O diário de Jonathas Abbott,
de Fernando Abbott Galvão. Editora Francisco Alves, 528 páginas. R$ 44

Jonatthas Abbott foi um personagem incomum no Brasil do século XIX. Inglês, de família pobre, chegou à Bahia com 16 anos fazendo o papel de groom (uma mistura de discípulo e serviçal) do cirurgião brasileiro José Álvares do Amaral, que logo percebeu a vocação do rapaz e lhe incentivou os estudos. Ao morrer em 1868, com 72 anos incompletos, na sua amada Bahia, após 32 anos como professor na Faculdade de Medicina e depois de ter recebido todos os títulos e honrarias possíveis, Abott foi considerado uma figura central no desenvolvimento da medicina brasileira.

O livro vai na contramão dos diários dos viajantes europeus que estiveram no Brasil do início do século XIX e retrataram a vida aqui de forma precisa, porém muitas vezes baseada apenas no pitoresco de um terra primitiva em relação à Europa. Abbot assume o papel contrário. Inglês apenas de nascença, adota o Brasil como sua verdadeira pátria e traça um retrato fiel dos países europeus que visita em 1930, quando vai fazer um curso de especialização cirúrgica. Da Inglaterra, por exemplo, suas observações não são nem um pouco elogiosas, com destaque para a epidemia de cólera-morbo e a falta de educação. "Que povo! Que gente! Que canalha desbocada! A bebedeira, miséria e a sem-vergonha andam aqui de mãos dadas".

A descrição precisa de procedimentos cirúrgicos numa época em que não havia a anestesia como conhecemos hoje e as sanguessugas ainda eram utilizadas normalmente para sangria dos pacientes - isto sem contar a quantidade de procedimentos que terminavam com a morte do paciente, como um parto – pode embrulhar alguns estômagos mais sensíveis, mas a narrativa de Abbott é tão natural e rica de observações inteligentes, trazendo muitas vezes considerações bem-humoradas do cotidiano, que acabamos nos envolvendo. Não nos esqueçamos de que ele era um médico e muitas vezes misturava a rotina do seu trabalho com atividades de lazer. "Morreu o meu amputado; vi dois amantes beijando-se no caminho do Unhão".

O livro foi organizado pelo trineto de Abott, o embaixador Fernando Abbott Galvão, que enriquece com notas explicativas as anotações da viagem à Europa no começo dos anos de 1830, inclusive tendo o cuidado de explicar os anglicismos utilizados por ele. Na outra parte do livro, Galvão parte para uma biografia bastante fluente de seu trisavô, inclusive citando o momento mais dramático de sua vida, o suicídio da filha Leopoldina, em 1835, fato que talvez explique o sumiço de muitas folhas do seu diário, “pois é forçoso admitir que o bem intencionado violador, em virtude de um preconceito hoje superado, tivesse pretendido escamotear um fato que lhe parecia desonroso”, como menciona no prefácio o também diplomata Rubens Ricupero. Também está ali mencionada a Revolta dos Malês, rebelião de escravos muçulmanos na Bahia, em 1835, na qual Abbott tratou de muitos feridos.

As viagens de navio, outro tormento para a época, são também descritas por Abott com realismo, embora muitas vezes ceda a voz à leveza de espírito. “A manteiga está dura, a carne de porco fresca já dura cinco dias sem sal e os percevejos morreram todos por não trazerem capotes: bem feito!” Dá para perceber que para um europeu já devidamente adaptado à vida baiana, o frio e a chuva europeus são uma tortura sem fim, principalmente quando há pouco dinheiro para a lenha e é preciso acordar cedo para aulas de anatomia.

Além das saudades do Brasil (“Já não sou infeliz, recebi doze cartas hoje”), Abbott lamenta profundamente as rebeliões de escravos na Bahia e as batalhas entre portugueses e brasileiros no período que antecedeu a renúncia de D. Pedro I, contemporâneas das revoluções de 1830 na Europa, das quais ele foi testemunha pessoal de algumas escaramuças.

Gosto pela cultura incomum para o seu tempo

Apesar de ter nascido em profunda pobreza, desenvolveu um gosto pela cultura incomum para o seu tempo. Entre uma amputação e uma dissecação, não deixava de assistir a peças e concertos, mas sua grande paixão realmente foi a pintura, tanto que sua valiosa pinacoteca, talvez a maior do Império, acabou constituindo o núcleo do Museu de Arte Sacra da Bahia. Sem dúvida, um homem incomum, que deixou marcada sua passagem pelo Brasil e pela cidade que tanto amou.

- FOTO: Faculdade de Medicina da Bahia

1 Comentários:

Às 15 de abril de 2011 às 18:46 , Blogger Unknown disse...

Como conseguir o livro?

 

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