terça-feira, 16 de junho de 2009

UMA ILHA CHEIA DE ÓDIO, AMOR, BODAS E GUERRA


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 24 de março de 2001)

Skármeta volta a prender o leitor em livro sobre personagem com a vertigem no olhar

As bodas do poeta
, de Antonio Skármeta. Tradução de Eric Nepomuceno. Editora Record, 370 páginas. R$ 30

A capa de Victor Burton funciona como uma bela moldura para o novo romance de Antonio Skármeta, autor sempre lembrado pelo sucesso de “O carteiro e o poeta”. Como só mesmo os teóricos apressadinhos que gostam de decretar o fim do romance resistem a uma boa história, aí está ela, com todos os seus ingredientes mais do que tradicionais: amor, morte, felicidade, desespero, coragem etc. Como diz dom Antônio, pai da virgem mais cobiçada da ilha de Gema, um buraco nos cafundós do sul da Europa, “uma história que não está escrita não existe. É uma soma de recordações pessoais, entende?”

A trama se passa a maior parte na tal ilha, que não interessa a ninguém no mundo, exceto ao exército do Império austro-húngaro, ansioso por recrutar jovens à força para a iminente guerra do início do século. Numa dessas tentativas, os rebeldes liderados por Reino Coppeta matam todos os austríacos invasores a facadas, sendo que o irmão de Reino, Esteban, hesita, e aí se inicia um longo, e interessante, conflito de idéias a respeito do sentido da vida. E da morte.

Esteban, a sensibilidade e
a moral da ilha de Gema


Skármeta diz que realmente conheceu um sujeito com esse nome e relata a “vertigem daquele olhar azul, ainda mais indefinível que todas as aproximações que serão tentadas na minha ficção”. E Esteban é a sensibilidade e moral de uma ilha rochosa e cheia de agressividade e tédio, onde o único ponto que chama a atenção é o inexplicável equilíbrio de um pesadíssimo sino no topo da igreja, desafiando todas as leis da física.

Esteban também vive um amor, até então platônico, com a citada e cobiçada virgem, Alia Emar, que se prepara para casar com o homem mais rico da ilha, o austríaco Jerônimo, nas “bodas” que dão título ao livro. O casamento, ponto alto da história e que tem tudo para acabar em tragédia, tal o desejo ensandecido dos austríacos em vingar a emboscada, é cheio de turumbas, a dança típica da região, e que resvala, influenciada pelo álcool, na turumputa, a versão mais atrevida e que provoca reações nada elegantes nos rapazes.

Nesse ponto, aliás, o escritor não economiza no vocabulário e em certos trechos parece até uma versão chilena de Gregório de Matos. O noivado de Alia Emar, por exemplo, resiste à sombra de um outro casamento, entre outra formosa virgem da ilha e um avantajado e famoso (por isso mesmo) cidadão, cujo desenlace sangrento merece frases mais sujas do que aqueles jornais pornográficos que sempre circulam após o carnaval.

O livro impressiona pela coesão, mesmo quando a narrativa passa a ser feita pelas reportagens de um abusado correspondente da ilha. Todos os principais personagens são bem construídos e fica difícil definir um protagonista.

Escritor não abandona o
lirismo de seu best-seller


Skármeta não abandona o lirismo que tanto emocionou o mundo em “O carteiro e o poeta” e sobre a própria Alia Emar, ainda criança, retira uma frase que compensa todas as baixarias do livro: “Não há ninguém de oito ou nove anos que não tenha a alma inteira na beira dos olhos”. Mesmo o cinema, ainda engatinhando no período em que se passa a história, se encaixa numa certa atmosfera de bom-humor, principalmente quando um filme é exibido e o ator aponta a arma para a platéia. As ainda complexas experiências com a eletricidade dão luz – apesar do infame trocadilho – a Torrentes, um dos tipos mais interessantes do livro, que se propõe a iluminar o casamento de Alia Emar com uma geringonça fantástica que tem tudo para não funcionar.

O clima de apreensão constante que envolve a história parece antecipar o século de violência que viria por aí. Incrível é como Skármeta faz essa viagem tão distante com tamanha segurança e, com a lucidez de quem já entra no terceiro milênio, talvez acerte em cheio no mal do novo século: "Solidão. O inferno inteiro cabe nessa palavra".