ZÉLIA GATTAI E AS DOCES LEMBRANÇAS DE UMA PRAZEROSA E FRUTÍFERA VIDA A DOIS
(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em oito de maio de 1999)
Jorge Amado é o maior homenageado em novo volume de memórias da mulher
A casa do Rio Vermelho, de Zélia Gattai. Editora Record. 306 páginas. R$ 25
Palavra que só existe na língua portuguesa, a saudade é tema constante em nossa literatura. Neste resgate de um passado que só existe na memória, a emoção é presença certa em parágrafos repletos de alegrias e decepções. A mesma emoção que Zélia Gattai não escondeu ao falar do estado de saúde de seu marido, Jorge Amado, durante esta última Bienal Internacional do Livro, no Rio. Maior homenageado de “A casa do Rio Vermelho”, ele se revela onipresente nas várias histórias narradas, seja em singelas traquinagens feitas com e contra o pintor Carybé, ou em momentos nos quais a auotra não esconde as conseqüências dos 30 anos de vida a dois. “Segurei a mão de Jorge: se é pra morrer ao menos que morramos de mãos dadas”.
A forma de contar as histórias segue a linha das páginas que uma então encabulada Zélia mostrou ao marido e do qual recebeu o seguinte veredito: “Gostei da simplicidade da escrita. Coisa difícil de conseguir.” Daí para o sucesso de “Anaquistas, graças a Deus”, foi um passo. Mais oito livros vieram, incluindo este, centralizado na movimentada casa da rua Alagoinhas 33, no bairro do Rio Vermelho, em Salvador. Desde a escolha do terreno até o momento em que ficou pronta, ela passou a receber personalidades ilustres como Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir – que se deslumbraram ao visitar terreiros de macumba – e também desconhecidos, como o jovem padre que foi pedir autógrafos a Jorge Amado e se ajoelhou a seus pés. A imagem de Exu na entrada da casa, que até hoje recebe meio copo de cachaça diário, despejado pela própria Zélia, garante o caráter ecumênico do recinto.
Anônimos personagens baianos
dão tempero às histórias
As mais variadas tendências políticas passeiam livremente nestas memórias, de Pablo Neruda a Antônio Carlos Magalhães, definido como um “homem dinâmico e empreendedor”. O golpe de 1964 recebe algum destaque, mais pelo que representa em termos de perseguição a amigos do casal, e também por coincidir com o período em que Jorge e Zélia deixam de vez o Rio de Janeiro. É aí que entram em cena os personagens anônimos da Bahia, matéria-prima dos jubiabás da vida e protagonistas de momentos sensíveis e pitorescos.
O mestre-de-obras Rufino, que bate na porta do Rio Vermelho com um ramo de flores numa das mãos e um problema na outra; Florinda dos Santos, a misteriosa mulher de roxo; o pintor e vidente nas horas vagas Cardosinho, que jura terem sido Jorge e Zélia um casal de príncipes árabes há cinco mil anos; além dos artistas iniciantes e cheios de esperança, todos chegam à casa do Rio Vermelho com uma boa história para contar, o que os escritores agradecem.
E elas são contadas, muitas, entre redes preguiçosas, almoços caprichados e bate-papos intermináveis. Estão lá o poema-petição de Vinícius de Moraes, que pediu e conseguiu o asfaltamento da rua Alagoinhas; o gato Nacib, que trabalhou como peso de papel para os originais de “Dona Flor e seus dois maridos” (e morreu tragicamente com uma espinha na garganta) e até Mané Pato, o Citröen movido a óleo de rícino que levou o casal do Rio para a Bahia.
Faltam fotos no livro, o que é uma pena, mas sobram indiscrições. Jorge Amado, por exemplo, não sabe dançar e tem pavor de viagens aéreas, é o que revela sua esposa, uma pé-de-valsa que adora viagens. São várias, aliás, descritas no livro, inclusive uma em estilo on the road pelos Estados Unidos e na qual o carro quase deslizou precipício abaixo pela neve da Pensilvânia. Na Europa, o deslumbramento com os velhos encantos do continente perde a força com a bagagem roubada em Colônia. Na também alemã Düsseldorf, um congresso de escritores latino-americanos ganha o seu tom dramático quando a esposa de um famoso escritor baiano é esquecida no hotel. E, como boa filha de italianos, não esconde a irritação e despeja impropérios contra a filha e a amiga.
Escritora não faz anotações,
usa apenas sua memória
A autora não esconde seu lado mãe-coruja. Nem ela, nem a sogra Lalu, que sente prazer em enaltecer as qualidades do filho bem em frente à nora. Família, amigos, vida, morte, doença, Zélia Garrai vai escrevendo seu livro de memória, assim mesmo, sem o “s”, já que ela diz não fazer anotações. Desde outubro, quando terminou a obra, novas histórias e personagens já devem estar à espreita. Pois como Neruda disse a ela, e foi registrado: “Um livro de memórias não pode ter fim”. Embora seja sempre um risco escrever, ou mesmo, falar sobre o passado. Por quê? O próprio poeta chileno dá a resposta: “Não me perguntem por ninguém, morreram todos”.