A DAMA DO SUSPENSE DIZ ADEUS
(Publicado no caderno "Idéias", do "Jornal do Brasil", em 22 de junho de 1996)
No seu último romance, Patricia Highsmith explora o submundo gay e faz o sangue correr nas limpas e imaculadas calçadas suíças
Small G - Patricia Highsmith - Tradução de Mauro Pinheiro - Mandarim, 372 páginas - R$ 35
Small G é o nome de um bar suíço freqüentado em sua maioria por gays e lésbicas. Também conhecido por Jakob, o bar dá o nome ao último romance da consagrada escritora americana Patrícia Highsmith, morta no ano passado e que escreveu, entre outros sucessos, o livro que deu origem ao genial filme Pacto sinistro, de Alfred Hitchcock. O réquiem literário de Highsmith é um emaranhado de relações afetivas, nas quais Rickie gosta de Teddy, que gosta de Luisa, que gostava de Petey, que gostava de Rickie. Nesse meio, há espaço para Dorrie, que gosta de Luisa, e para Renate Willy, de quem ninguém gosta. E por aí vai.
A primeira vítima de Highsmith é Petey, um rapaz de apenas 20 anos, que morre logo na primeira página do livro, vítima da faca de um assaltante à procura de drogas, figura muito comum (pelo menos segundo a história) nas limpas e elegantes ruas suíças. Apesar do que se espera, o crime de abertura foge à rotina – tão comum em livros policiais – de se tornar um mistério profundo, envolvendo todos os personagens e só desvendado ao final da trama.
O rapaz, no caso, está longe de ser um Salomão Ayala ou uma Odete Roitman, e sua morte serve para tomarmos contato com dois personagens-chave da história, os já mencionados Rickie e Luisa. Ele, amante e apaixonado por Petey. Ela, também apaixonada e meio que dispensada pelo rapaz. Feitas as devidas apresentações, a autora ingressa na complicada rede de relações dos conhecidos de Rickie e Luisa, complicação baseada muito mais na diversidade da escolha sexual dos personagens do que em outra coisa.
Nesse emaranhado de gays, lésbicas e até mesmo alguns heterossexuais, é notável a capacidade de Highsmith em enriquecer seus tipos com detalhes tão curiosos quanto fascinantes. Da mesma forma, apesar da criação de tantas tramas paralelas, ela não deixa ninguém “sobrar” na história e reserva algumas doses de importância até mesmo para aquela figura que só aparece em um parágrafo lá pela página 200 e tal.
De toda essa gente, quem quase monopoliza as “doses de maldade” da história é frau Renate Hagnauer, dona de um ateliê e que não permite que sua estagiária Luisa se relacione com Rickie e suas amizades, sobre as quais Renate tem uma opinião tão profunda quanto o seu ódio: “Imbecis que não têm parceiros e fazem apenas sexo em massa”.
Renate, no entanto, não é de todo má. Praticamente tirou Luisa das ruas, uma menina desorientada que havia sido molestada pelo padrasto, e deu-lhe casa e uma profissão. No entanto, a obsessão cada vez mais sufocante com que trata Luisa, e o ódio por homossexuais numa história em que eles são maioria, não lhe dão escapatória. Frau Hagnauer é, de fato, a grande vilã de Small G.
Para operacionalizar suas más intenções, e como possui um defeito no pé que dificulta sua mobilidade, Renate conta com a ajuda de Willy Biber, um grandalhão abobalhado capaz de acreditar em tudo que ela diz. Pela aparência grosseira e o cérebro opaco, Biber assume assim o papel de ameaça constante da história, principalmente para Teddy Stevenson, um garotão boa-pinta que se apaixona por Luisa, e também para Dorrie Wyss, uma vitrinista lésbica que partilha dessa paixão pela protegida de Renate.
Vale ressaltar que Patrícia Highsmith, apesar de ter escrito um livro onde predominam homossexuais, em nenhum momento resvala para preconceitos ou estereótipos tão comuns por aí. O próprio Rickie Markwalder, um gay assumido e figura bem conhecida no bairro, talvez seja o personagem mais importante de Small G. É ele quem orienta todo mundo, paga táxis, almoço e até empresta seu quarto para a pobre da Luisa dormir quando Renate não a deixa ir para casa.
A incessante busca de independência por Luisa, aliás, é o principal reservatório de dramas do livro. Sempre há uma proibição do uso do telefone ou uma porta trancada de madrugada para preencher os capítulos de seus devidos problemas. À medida que a menina se envolve com o animado grupo de Rickie, seus problemas se tornam comuns e a história assume contornos bem mais dramáticos.
A autora, no entanto, toma o devido cuidado para não cair em uma narrativa esquemática, do tipo “a vilã contra os bonzinhos”. A identificação com os problemas de Luisa e a vontade de ajudá-la trazem a cada um dos personagens a possibilidade de uma autocrítica reveladora. Os desejos e as frustrações de Rickie e seus amigos acabam gerando uma sucessão de pequenas histórias paralelas, que dão a Small G uma narrativa tão fragmentada quanto interessante. No final das contas, o próprio drama central de Luisa e sua “terrível” patroa acaba resvalando para um anticlímax, que dá bem a medida do grau de amadurecimento de uma escritora em seu gran finale.
1 Comentários:
Obrigado por essa resenha! ;)
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