segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

VOU TE CONTAR - 20 HISTÓRIAS AO SOM DE TOM JOBIM

          


          Lançado para marcar os 20 anos da morte de Tom Jobim, ocorrida em 8 de dezembro de 1994, "Vou te contar - 20 histórias ao som de Tom Jobim" (Rocco) reúne contos de autores contemporâneos baseados em músicas do grande compositor. É uma homenagem bem apropriada, pois, como diz Ruy Castro na contracapa, Tom respeitava a palavra tanto quanto as notas musicais, e o que vemos aqui é uma reverência feita, com muito talento, a um dos grandes nomes da cultura brasileira.
        Organizado por Celina Portocarrero, o livro segue a ordem alfabética dos autores, de Adelice Souza a Vinicius Jatobá, que faz uma leitura original de "Águas de março", repleta de imagens poéticas espalhadas em um ritmo dinâmico. Já Adelice pontua seu conto com o primeiro verso de "Wave", Vou te contar, que inicia os parágrafos de uma história que mistura romantismo, praia e um amor estrangeiro que recebe o aval da rainha do mar. "Deixei os pés se molharem e a água nada ondulada lambia os joelhos e uma parte das coxas. E fiquei ali, ainda enxutos o sexo e o ventre, o olhar a pasmar-se no meio da secura fria. Agradecia, agradecia, agradecia".
     Entre Adelice e Vinicius circulam nomes como Claudia Nina,  Susana Fuentes, Lúcia Bettencourt, Marilia Arnaud, Angela Dutra de Menezes, Silviano Santiago, Henrique Rodrigues, Branca de Paula, Danielle Schlossarek e Mirna Brasil Portela, que faz de seu conto "Ligia" uma história de desespero dentro de um avião em turbulência, o clímax onde nada mais resta a não ser um surpreendente beijo na boca.
     O livro não traz as letras completas das músicas que inspiraram os autores, é uma opção editorial, o que de certa forma dá uma liberdade até maior para que os contos sejam, de fato, a recriação de cada canção de Tom Jobim. Assim, em alguns casos, não há, dentro do texto, nenhuma referência explícita à letra da canção que inspirou o conto, mas podemos observar, aqui e ali, um clima, um ambiente que nos remete à fonte daquela história.
        Homenagear um grande artista fora da sua área específica é sempre um risco de se "errar a mão", de se produzir algo completamente fora de contexto, mas não é o que se vê aqui. Os autores entraram no universo do compositor, acompanhados de uma edição caprichada e as belas fotos de Isabel De Nonno, que ilustram a capa e o início de cada conto.
       Como Vinicius de Morais, o principal parceiro musical de Tom, já disse numa canção, "a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida", e é exatamente o que vemos aqui nestas pequenas narrativas, que também podem ser encontros repletos de acidez, como entre pai e filho que nunca se entenderam ("Fotografia", de Carlos Henrique Schroeder), um ex-casal com muitas arestas por aparar ("Você vai ver", de Antonio Carlos Viana), a mulher que aguarda, na melancolia de uma praia onde tudo mudou, o encontro acordado trinta anos atrás ("As praias desertas", de Marcelo Moutinho), ou a filha que resolve encarar o passado e rever o pai que abandonou a família ("Espelho das águas", de Monique Revillion).
         Menalton Braff, o autor mais experiente da coletânea, com seus 20 livros publicados e um prêmio Jabuti na bagagem, escreve um conto sobre a descoberta do amor, aquele amor que deixa "minha testa úmida, minhas mãos encharcadas, meus olhos mergulhados numa nuvem densa" e que pode, ou não, se materializar em um encontro (novamente ele). E é o amor que sustenta, de fato, boa parte das histórias, o amor de Tom Jobim pelas pessoas, pela natureza, pela arte, enfim, pelo seu querido Rio de Janeiro. "Dizem que a maior solidão é a de quem está no meio de uma multidão. Naquele momento, ele tinha certeza de que a maior solidão era aquela de quem tem dúvidas acerca do amor, estando ao lado da pessoa supostamente amada" ("Vivo sonhando", de Danielle Schlossarek).

RIO NOIR



Rio Noir - (coletânea de contos editada por Tony Belloto) - Casa da Palavra - 304 páginas.

         "Rio Noir" é a versão carioca de uma série de livros de sucesso nos Estados Unidos, publicada pela editora Akashic Books e que reúne contos noir de escritores do gênero (ou não) ambientados em alguma cidade escolhida para aquela edição. Como a ideia deu muito certo, a editora ampliou a coleção para cidades de outros países, como esta que traz a cidade do Rio de Janeiro como cenário - a primeira publicada no Brasil, feita em parceria com a Casa da Palavra e organizada por Tony Belloto, músico do grupo Titãs e já bastante experiente no tema com seus livros protagonizados pelo detetive Remo Bellini.
         A literatura noir teve seu auge nos Estados Unidos em meados do século passado, graças a autores como Raymond Chandler, Dashiell Hammett (do clássico "O falcão maltês") e James Ellroy e se caracterizou principalmente por fugir ao padrão da trama policial comum, onde os personagens são muito bem demarcados. No ambiente noir, o clima é outro, há humor, há crítica política e comportamental, os detetives são durões, mas sensíveis, gostam de jazz, boa literatura e bons restaurantes, seus auxiliares costumam ser pitorescos e muitas vezes "roubam a cena". As mulheres são sensuais e determinadas (geralmente louras) e os diálogos ágeis e muito bem escritos. Sem contar, obviamente, o clima sombrio, com muito nevoeiro e becos escuros (noir significa preto, em francês). Um fã do gênero é o cineasta Quentin Tarantino, que no filme Pulp Fiction fez uma homenagem ao livro e filme noir, inclusive no título, já que pulp fiction era o tipo de publicação inicial da literatura noir, feita em formato de bolso, com papel barato e que poderia ser vendida em tudo que era lugar.
         Para transportar a literatura noir ao Rio de Janeiro, foram convidados 15 autores, alguns já dominando o gênero da literatura policial, como Luiz Alfredo Garcia-Roza, o próprio Tony Belloto e o jovem Raphael Montes, sucesso de vendas com seus romances "Dias perfeitos" e "Suicidas", além de nomes conhecidos na imprensa carioca, como Arnaldo Bloch, Arthur Dapieve e Guilherme Fiúza (que afirmou nunca ter escrito um conto antes deste livro), e autores importantes da literatura contemporânea, como Adriana Lisboa e Flávio Carneiro. Não poderia faltar, é claro, Luis Fernando Verissimo, criador do impagável detetive Ed Mort e que ambienta seu conto no bairro de Bangu, onde um duplo assassinato ocorre ao lado de um manuscrito de poesias intitulado "A hora das sombras compridas": "Uma das poucas coisas no apartamento que não estavam respingadas de sangue".
         O resultado é muito bom, com os autores criando suas histórias exatamente em cima do contraste entre as belezas naturais da cidade e a tão decantada hospitalidade dos cariocas e seu espírito festivo com o que se esconde (ou nem tanto) neste "purgatório da beleza e do caos", como já cantou Fernanda Abreu.
         Assim, cartões-postais consagrados da cidade surgem como cenários de situações que nenhuma agência de turismo iria publicar em "folders" promocionais, como o dedo que a personagem criada por Victoria Saramago encontra numa caminhada na Floresta da Tijuca ("Ponto Cego"), o corpo caído no Morro do Corcovado, com direito a um típico nevoeiro noir ("Táxi argentino", de Arthur Dapieve), o famoso litoral da zona sul esquadrinhado por um gigolô disposto a observar "as burguesinhas do Leblon, as bichas da Farme, as gringas de Copacabana e as coroas cachorras do Leme" ("Coroas saradas", de Tony Belloto), e mesmo o canibal da Rua Canning, um coronel reformado do Exército que acreditava estar curado de certos hábitos ("Canibal de Ipanema", de Alexandre Fraga, que além de escritor é policial federal).
         Embora o tráfico de drogas esteja ligado a boa parte dos crimes no Rio, poucos autores o utilizam em suas histórias. O que sobressai mesmo é o clima noir das histórias e suas referências, seja no caso de Adriana Lisboa, que em "O enforcado", história passada no Largo do Machado, nos lembra "A cartomante", um dos grandes contos do mestre Machado de Assis, ou Flávio Carneiro, que em "A espera", narra uma história sem nenhuma cena de violência, mas cheia de deduções criativas e interessantes do Gordo, dono de um sebo na Rua do Lavradio e que ajuda um detetive amigo seu a investigar o homem que segue todo dia uma funcionária do setor de Obras Raras da Biblioteca Nacional e fica parado encostado num poste, jornal embaixo do braço, em frente ao prédio dela. Mais noir, impossível.




















domingo, 4 de janeiro de 2015

ESCRITOS SOBRE ESPAÇO E HISTÓRIA



(Publicado no caderno "Prosa", do jornal "O Globo", em 27 de dezembro de 2014)

Escritos sobre espaço e História - Maurício de Almeida Abreu (organizado por Fania Fridman e Rogério Haesbaert - 464 páginas


          O geógrafo Mauricio de Almeida Abreu é lembrado principalmente por dois livros clássicos, “Evolução urbana do Rio de Janeiro” e “Geografia histórica do Rio de Janeiro”, este último uma obra que levou 15 anos de pesquisa e foi concluída em 2011, mesmo ano da morte do autor. Uma grande contribuição ao estudo deste importante intelectual brasileiro é dada agora, com a reunião de nove artigos seus que estavam espalhados em outras publicações, trabalho organizado pelos professores Rogério Haesbaert e Fania Fridman.
          Os artigos são variados, com um amplo espaço dedicado ao desenvolvimento do estudo da geografia no Brasil no século XX. O autor enfatiza a marcante influência da geografia francesa, passando pela criação da Associação dos Geógrafos Brasileiros e do Conselho Nacional de Geografia, nos anos 1930 (década em que foi implantado o curso superior de Geografia), e a consolidação da profissão com as assembleias gerais da AGB, nas quais havia um espaço prioritário para o trabalho de campo, o “motor principal da pesquisa geográfica” e ponto de partida para as primeiras teses importantes da disciplina no Brasil.

OLHAR SOBRE O PASSADO

          Abreu também esclarece no artigo “Sobre a memória das cidades” o que chamou de “ditadura do presente”, que durante muito tempo estabeleceu de forma arbitrária que à Geografia coubesse apenas analisar o presente, enquanto as dimensões temporais e históricas do espaço seriam função apenas da História. “Não há lei proibindo, e nada impede que a geografia estude o passado”. Para o autor, a busca da identidade dos lugares são, principalmente, uma busca de suas raízes, de seu passado, que pode se dar pelos vestígios materiais (construções da época ou aspectos da natureza) e nas instituições de memória (museus, bibliotecas etc).
          No livro, percebemos como foi árduo o trabalho de diversos teóricos para tornar a Geografia uma disciplina autônoma, já que no início vários aspectos de seu estudo eram conflitantes com ramos da História, das Ciências Sociais e da Ecologia Humana. A influência do neopositivismo e a criação do IBGE deram à Geografia um papel importante nos sistemas de planejamento nacional instalados a partir do golpe militar de 1964, embora, a partir da abertura política, nos fins da década de 1970, o pensamento crítico em relação ao modo de produção capitalista e suas consequentes tensões sociais ganhasse cada vez mais espaço nas universidades. “A luta pela apropriação da terra urbana pelas camadas mais pobres da sociedade também despertou o interesse dos geógrafos críticos, levando-os inclusive a participar, de forma engajada, desse processo”, escreve.
          Um capítulo indispensável a quem estuda a organização fundiária do Brasil desde a colonização é “A apropriação do território no Brasil colonial”, no qual Abreu dá uma aula sobre como se deu a distribuição de terras no Brasil, mostrando a ligação entre Estado e Igreja Católica neste processo, com a Coroa Portuguesa e a Ordem de Cristo exercendo o “domínio temporal e espiritual” das terras conquistadas além mar. Além disso, há uma série de definições bem precisas sobre palavras e expressões presentes na pesquisa como vila, arraial, termo, fogos, sesmarias, correição etc.
          Em outro capítulo, “Pensando a cidade do Brasil no passado”, o autor questiona Sérgio Buarque de Holanda, que, assim como muitos pensadores da formação do Brasil, não viam nenhum método no surgimento das cidades pela administração portuguesa, o oposto do que ocorria na América Espanhola. “Ao contrário do que afirmou Sérgio Buarque de Holanda, muitas cidades brasileiras, dentre elas o Rio de Janeiro, foram decididamente um produto mental dos portugueses”. O Rio de Janeiro, aliás, tema de seu livro mais conhecido, merece destaque em outros capítulos, em temas como o abastecimento de água e a iluminação desde o período colonial, assim como a questão da habitação, sempre com reflexões instigantes e contestatórias. Como a maioria dos artigos foi publicada nos anos 1980 e 1990, fica uma frustração por não podermos discutir com ele a questão das UPPs nas favelas ou o aumento da inclusão social, por exemplo.
          O livro é indicado mesmo para leigos, pois devido ao caráter detalhista dos trabalhos de Abreu, tudo é explicado, sem contar a qualidade e a leveza de seu texto (um erro a ser corrigido numa segunda edição é a repetição de um parágrafo inteiro nas páginas 403 e 405). No final, temos uma bela homenagem ao grande geógrafo Milton Santos, morto em 2001, com quem Mauricio Abreu trabalhou na UFRJ e por quem nutria a mais profunda admiração.

*André Luis Mansur é jornalista e escritor, autor de “Fragmentos do Rio Antigo”


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