terça-feira, 5 de julho de 2011

CENAS FAMILIARES NA PROSA DE MARILYNNE ROBINSON


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo" (versão online), em 6 de dezembro de 2010)

"Em casa", de Marilynne Robinson. Tradução de Adriana Lisboa, Editora Nova Fronteira, 400 páginas. R$ 39,90

Autora do premiado romance “Gilead”, a americana Marilynne Robinson dá nova vida a seus personagens neste livro, desta vez centrando a trama no que restou da família do reverendo Robert Boughton, um homem à beira da morte que recebe a visita de dois de seus filhos na casa que um dia foi cheia de barulho e alegria e que agora abriga apenas melancolia e saudosismo, com todos os seus móveis e utensílios ainda como sempre estiveram. “O passado é muito bom, quando mantido em seu lugar”.

Apesar de ser um risco recriar personagens de um livro de sucesso, a escritora acerta a mão de novo, até porque “Em casa” pode ser lido tranquilamente sem a sombra da história anterior, como ressalta a autora: “Após escrever um romance ou um conto, sinto saudades dos personagens — é como se eu estivesse de luto”.

Glory é uma destas personagens. Professora quase quarentona, ela se vê num momento de indecisão e falta de perspectivas na vida, enquanto Jack, o caçula de todos, personagem criado com uma envolvente aura de mistério, sempre calado, que sumia de casa sem qualquer motivo aparente, agora retorna à casa quase vazia, para espanto e admiração do pai enfraquecido e da irmã com quem nunca teve muito contato. Perguntas são proibidas e, aos poucos, o constrangimento e a falta de tato vão sendo substituídos por uma atmosfera de confiança, ainda que relutante.

Jack sintetiza aquilo que dizem haver em toda família, a tal da “ovelha negra, o imprestável, que não se notava nas fotografias”. Ele parece ter plena consciência disso: “Não quero que vocês deem a mínima para mim. Nenhum de vocês. Nunca quis”. Jack não compartilha dos rituais e também não se sente estimulado a se abrir, a contar seus desejos e suas frustrações exatamente pela falta de um interlocutor confiável. Talvez o único momento em que tenha se sentido realmente “em casa” é quando não há mais o burburinho familiar e Glory assume o papel da interlocutora que ele nunca teve, os dois unidos em torno do pai ainda rigoroso apesar da saúde frágil. Na casa silenciosa, o som das coisas simples, como o de uma faca cortando a maçã, ganha contornos nunca percebidos antes, quando não se tinha tempo para a reflexão e o exercício da sensibilidade.

O esforço de Jack em se integrar, inclusive em relação à vizinhança, com quem mantém uma postura de estranheza, passa pelas discussões religiosas com o reverendo Ames, amigo de seu pai e que, como todos os outros, nunca viu com bons olhos o fato de Jack ser diferente dos demais membros da pequena e conservadora comunidade localizada no estado do Iowa. Ao voltar de onde ninguém soube que ele tinha ido, Jack esconde uma vida sentimental nebulosa e inclinações políticas perturbadoras para o local, como a sua preocupação com os problemas raciais.

O texto é leve, ameno e sem grandes reviravoltas no enredo. A rotina da família Boughton pode ser vivida em qualquer parte do mundo, com qualquer um de nós, e é esse o motivo pelo qual a trama criada por Marylinne Robinson, apesar de excessivamente longa, cria afinidade mesmo em terras tão distantes. Coincidência ou não, a tradução é de Adriana Lisboa, escritora que iniciou sua carreira de merecido sucesso justamente com um livro que tem a memória como personagem principal (“Os fios da memória”, Editora Rocco, 1999) e que deve ter se sentido bem à vontade ao transpor para a nossa língua o ciclo da família Boughton, cujo desfecho é um autêntico retorno às origens. “Lar. Que lugar melhor poderia existir na Terra, e por que parecia a todos eles um exílio?”