segunda-feira, 7 de junho de 2010

O MUNDO, DE JUAN JOSÉ MILLÁS


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 5 de junho de 2010)

O mundo – Juan José Millás – Tradução: Marcelo Barbão - Planeta Literário – 216 páginas – R$ 44,90


Todo mundo que teve infância (e acredito que todos tiveram, boa ou má) vai se identificar com a autobiografia de Juan José Millás, um dos melhores escritores espanhóis da atualidade e que centra suas memórias neste período da vida em que o sonho e o real se misturam e se condensam numa atmosfera de medo e esperança. “Minha mãe não consertou a realidade, o que demorei muito tempo para perdoar”.

O livro nasceu de um texto que Millás, que também é jornalista – ou periodista, na sua língua natal – iria escrever para o jornal espanhol “El país”, mas...“Não fui capaz de fazer a reportagem: acabava de ser atropelado por um romance”.

Apesar da pobreza impiedosa, que se manifestava nas roupas de segunda mão e na falta de proteção contra o frio desumano da infância, “que não desaparece nunca”, o menino Juanjo se protege na imaginação – matéria prima de qualquer escritor. Assim, o garoto cria o seu mundo à parte, descobrindo que o dono da quitanda é um agente da Interpol, que os mortos vivem num bairro vizinho e morre de medo de que a qualquer momento seja preso por ter furtado uma nota de cinco pesetas da carteira do pai. “O medo dos mais velhos produz pavor nos pequenos”.

É uma autobiografia com respingos de ficção, uma vez que em vários momentos ficamos na dúvida se o que o autor conta é a mais pura realidade ou se não é nada mais do que pura criação, tudo de uma forma bem sutil, nos apresentando uma história que se sustenta sem a necessidade de ser rotulada e que só perde a força quando o autor descreve longamente histórias lidas que o influenciaram de alguma forma, como um trecho da revista Seleções, da Reader´s Digest, cujo detalhamento excessivo dos trechos citados quebra o ritmo da narrativa, justamente quando o livro vai se aproximando do final.

O sexo, matéria fundamental de qualquer livro que trate deste período da vida em que a testosterona está saindo por todos os poros, não aparece de forma explícita, nem mesmo o desejo por ele. Há referências aqui e ali para a inevitável masturbação adolescente e algumas roçadas de pernas no banco do colégio com a colega que muitos anos mais tarde iria pedir um autógrafo ao escritor já famoso, como se fosse um espelho distorcido da menina que o encantava, mas que surge agora sem um dente e com um rebolado esquisito. “Ao chegar em casa, tranquei-me no banheiro e chorei, não por Luz nem por mim, mas pelas células. Foi isso que me disse absurdamente na frente do espelho”.

A descoberta da vida também era, para Millás, a descoberta da linguagem e a curiosidade que ela despertava no futuro escritor. A interrogação diante do sentido do que o pequeno Juanjo lia provocava dúvidas desconcertantes, típicas da infância, período em que associamos as palavras com as coisas da forma mais simples possível. “Por que, por exemplo, todo mundo comia lentilhas, quando o lógico era que os homens comessem lentilhos?” Para ele, consertar a realidade “era esgotador”, mas alguém precisava se ocupar disso e ele assumiu essa função, corrigindo, por exemplo, as pobres das “tardes mortas”, já que ninguém nomeava assim as manhãs e as noites, só as pobres das tardes é que desfaleciam no tédio da adolescência sem muitas perspectivas.

As memórias aqui não são apenas uma sucessão de fatos de um passado muito distante. Millás se sente fisicamente transportado para aquele período e sentindo fisicamente suas alegrias e dores, como quando escreveu sobre sua fuga da escola onde sofria castigos físicos. Com um prego machucando o pé, e correndo o risco de pegar tétano, andava pela chuva com desejo de morrer e, mesmo escrevendo confortavelmente em casa e ouvindo um disco de Bach, vivenciou aquilo como se estivesse presente no lugar, numa máquina do tempo imaginária que o levasse para onde quisesse, confundindo qualquer tipo de referência. Talvez este seja o maior mérito deste livro, o de nos mostrar que o que passou não passou e continua ali, à espreita de que tiremos a poeira e botemos pra tocar o disco ou passar o filme de nossas vidas. E tudo em alta definição.