quinta-feira, 25 de março de 2010

PRECONCEITO QUE NÃO OUSA DIZER O PRÓPRIO NOME


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 24 de junho de 2006)

Ana Maria Gonçalves constrói obra de fôlego sobre escravidão no Brasil

Nascida em 1970, a mineira Ana Maria Gonçalves consegue, apesar de jovem, a proeza de lançar um romance histórico de quase mil páginas e por uma grande editora. Em "Um defeito de cor" (Record), que tem como tema a escravidão, ela mantém um fôlego de maratonista durante toda a trama, principalmente por dois motivos: a intensa pesquisa histórica que fez e a envolvente aventura de Kehinde, a menina africana que é escravizada e percorre boa parte da vida brasileira do século XIX. Para a autora, a protagonista de seu romance sofreria no Brasil de hoje, onde ainda persiste "um preconceito velado, insidioso, que não ousa dizer o próprio nome".

É inevitável começar a entrevista com a pergunta: o que significa para você, uma autora jovem, que está em seu segundo livro, publicar um romance de quase mil páginas por uma grande editora?

Meu primeiro livro (“Ao lado e à margem do que sentes por mim”) foi uma produção independente e cuidei de tudo, desde a confecção das capas, uma a uma, até a comercialização. Então, só agora estou tendo o gostinho de ser apenas escritora, que é do que realmente gosto, podendo contar com a estrutura da Record, que está sendo fantástica em todas as etapas.

Seu livro tem uma grande quantidade de informações históricas, não apenas sobre a escravidão, como sobre o Brasil do século XIX. Gostaria que falasse sobre este trabalho de pesquisa e quanto tempo durou.

Foram dois anos. Minha idéia inicial era escrever um livro sobre a Revolução Malê, que acabou se concentrando mais no sétimo capítulo, pois encontrei um material riquíssimo que me estimulou a um projeto mais ousado. Tive muito medo de deixar de fora assuntos importantes, fui colocando tudo no livro.

Você apresenta uma visão bem realista da crueldade com que eram tratados os escravos. Até que ponto Gilberto Freyre, que você cita na bibliografia e que chegou a ser criticado por uma visão idealizada da escravidão no livro “Casa-grande & senzala”, a influenciou?

Eu deixei para ler Gilberto Freyre depois de já ter a personagem narradora bastante solidificada, com voz e idéias próprias, para que ela não se deixasse influenciar pelas idéias dele. Tentei ao máximo fugir de teorias e espero que tenha conseguido, pois precisava me ater a informações e análises disponíveis no final do século XIX, que é o tempo narrativo.

No livro, depois que o “sinhô” José Carlos violenta Kehinde, a mulher dele, Ana Felipa, adota a criança, já que ela tinha problemas para engravidar. Era uma situação comum na época?


Era uma situação possível, mas não sei dizer se comum. Um dos meus maiores ganhos ao escrever esse livro foi perceber uma diversidade que até então não imaginava. Com tudo isso, não vejo muito como traçar um perfil do escravo ou do senhor de escravo ou de seus comportamentos em determinadas situações.

Aproveitando a pergunta anterior, gostaria que você falasse da intensa miscigenação, muitas vezes forçada, que acabou se tornando a principal característica dos brasileiros.

Os estudos mais significativos são poucos e recentes, pois me parece que só a partir da década de 1990 o assunto começou a despertar maior interesse. Não se sabe, por exemplo, a dimensão do impacto econômico da comercialização de escravos e mercadorias de troca. Acho que um passo importante talvez fosse dar menos importância à miscigenação, que tem uma conotação racial, e se concentrar nos fatores socioculturais, onde houve grande fusão e assimilação. Talvez assim consigamos parar de tratar a África e seus habitantes, no passado ou na atualidade, como um continente e um povo homogêneos. Homogeneizar, no caso, é reforçar os preconceitos e estereótipos raciais.

Você também fez uma grande pesquisa sobre as expressões africanas, principalmente religiosas. Até que ponto estes cultos e rituais serviram para diminuir o sofrimento e até mesmo unificar os negros escravos?

As diversas religiões trazidas pelos africanos para o Brasil, além de serem uma forma de resistência à conversão forçada ao catolicismo, e de serem uma ligação com o lugar de onde foram tirados contra a vontade, também assumiram em muitos aspectos o papel da família do ex-patriado. Além disso, se exercida com verdadeira fé (porque em alguns casos podia ser forçada ou de conveniência), a religião ajudava a suportar as agruras do cativeiro.

Você mostra de forma bem clara que a escravidão já era praticada entre os próprios negros na África. Muita gente ainda pensa que os portugueses precisavam buscar os escravos, quando na verdade eles eram oferecidos pelos chefes das tribos. Você não acha que esse tema merecia ser mais discutido?

A escravidão é quase tão antiga quanto a Humanidade, mas a memória dos seus efeitos é bastante curta, fazendo com que sua pesada herança recaia hoje apenas sobre os filhos da diáspora africana. Na África, a escravidão já existia desde muito antes do contato com os europeus e as elites coloniais, que inauguraram e fomentaram o tráfico transatlântico. Na maioria das vezes, esses apenas ancoravam seus navios e esperavam pelo embarque da carga.

Lendo sua descrição do navio negreiro, quase dá para sentir o “cheiro de sangue” que sua personagem cita durante toda a viagem. Você acha que esse sofrimento tão forte contribuiu para unir os negros que chegavam ao Brasil, mesmo vindos de nações tão diferentes?

Também não podemos afirmar isso. Muitas vezes a experiência traumatizante da viagem em comum não era suficiente para apaziguar inimizades tribais ou entre reinos, ou mesmo de cunho religioso. Aliás, os lotes de escravos mais valorizados eram os multiétnicos, porque, pelo menos inicialmente, eles não tinham como se comunicar.

Qual a importância dos escravos muçulmanos no processo de resistência dos negros no Brasil? É outro tema que não é muito abordado e que acabou se tornando um elemento muito importante em seu livro.

Os escravos muçulmanos tiveram grande importância, principalmente na Bahia, para onde foram em maior número. Muitos eram da etnia hauçá e grande parte foi morta ou mandada de volta à Àfrica na dura repressão a uma rebelião ocorrida em 1816, em Salvador, na qual tiveram grande participação. Confiando na palavra do Alcorão, que prega a total igualdade entre os homens, não se submetiam à atitude servil exigida pela escravidão. Além dos mais eram disciplinados e, na maioria das vezes, muito mais cultos do que os seus donos. Eram escravos muito valorizados, que serviam de tutores para os filhos de seus senhores ou trabalhavam principalmente nos escritórios comerciais. Isso dava a eles certa liberdade de circulação, facilitando a organização de uma das mais importantes rebeliões escravas no Brasil, a Revolta dos Malês, em Salvador, em 1835. Foi a primeira grande rebelião urbana que teve um planejamento cuidadoso, também duramente reprimida, provocando a morte, a fuga ou a deportação da quase totalidade deles.

Como você vê o racismo hoje no Brasil? Sua personagem Kehinde ainda sofreria muita discriminação?

Vejo como do pior tipo possível, pois é um preconceito velado, insidioso, que não ousa dizer o próprio nome. Combatê-lo é como combater um inimigo invisível, mas quase onipresente. Acredito que a Kehinde também o sofreria, pois pouquíssimos escapam. Mas também acredito que ela reagiria achando que o problema é do preconceituoso, e não dela, pois ela os enfrentaria para vencer, ao preconceito e ao preconceituoso, apesar de ser portadora do "defeito de cor".

UM ROMANCE HISTÓRICO QUE JÁ NASCE CLÁSSICO

Autora encontra forma envolvente e original para falar sobre um tema bastante discutido

Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. Editora Record, 954 páginas. R$ 79,90

“Um defeito de cor” é desses livros que já nascem clássicos. Não é à toa que Ana Maria Gonçalves conseguiu um feito raro no mercado literário brasileiro. Sendo praticamente desconhecida, pois este é seu segundo livro, obteve o apoio de uma grande editora, que não apenas a publicou como acreditou numa obra de quase mil páginas. Além disso, a autora mineira apostou em um tema já exaustivamente discutido no Brasil, a escravidão, só que de forma original e envolvente.

Ana Maria desenvolve aqui um romance histórico de grande qualidade, não apenas no estilo, dinâmico e envolvente, como na pesquisa, profunda como o tema merece, fazendo sua personagem principal, Kehinde, depois rebatizada Luísa Gama, nascer na África no início do século XIX e ser levada como escrava a um lugar muito distante, tratada como mercadoria no navio negreiro e separada da família de forma traumatizante.

Diferentemente das teses acadêmicas sobre o assunto, que por melhores que sejam não superam a frieza da figura do “observador distante”, Ana Maria consegue levar o leitor a mergulhar no universo da pequena escrava, a sofrer com ela, a viver sua dor e a ter as mesmas esperanças. Outra pesquisa que chama a atenção no livro é a das expressões africanas, principalmente religiosas. Os escravos africanos nunca abandonaram suas crenças, mesmo tendo de aportuguesar muitos dos nomes de suas divindades, e a riqueza de seus rituais é retratada aqui como se estivéssemos vivendo aquela época em que duas culturas completamente diferentes se misturavam, primeiro como uma relação de opressor e oprimido, e depois como uma mistura que acabou se tornando a base da formação do povo brasileiro.

O tráfico de escravos é abordado na visão realista da cumplicidade dos chefes das tribos africanas, que já tinham seus cativos e os vendiam aos portugueses. “Todos os dias chegava mais gente capturada em muitos lugares da África, falando línguas diferentes e dando várias versões sobre o nosso destino”. Chamado de tumbeiro, o navio negreiro tem a sua rotina relatada aqui de forma bastante crua, um lugar onde não dava para ninguém se mexer e que após alguns dias de viagem exalava um odor de fezes, urina, vômito, suor e feridas insuportável. “Alguns adoeceram e tiveram febre, mas o que dava mais aflição eram os gemidos de um fulani que tinha sido empurrado da escada e quebrara a perna, o osso chegando a furar a pele”.

O fio condutor do livro é a revolta dos escravos muçulmanos na Bahia dos anos de 1830, escravos chamados de muçurumins e que eram os mais conscientes de sua condição, acreditando que todo aquele sofrimento era o fermento de uma revolta que iria libertá-los. Conseguiam praticar sua religião e aprendiam a ler e a escrever, ajudando outros escravos a conseguirem suas liberdades, seja através da compra de cartas de alforria ou da fuga para os quilombos, “um lugar onde os pretos viviam livres e felizes, cuidando uns dos outros”.

Protagonista atravessa a
história em busca do filho


Luísa passa por todos os momentos históricos importantes de boa parte do século XIX no Brasil, indo parar em várias cidades, como o Rio de Janeiro, onde faz uma minuciosa descrição dos hábitos, lugares e pessoas. Luísa passa também a maior parte do livro em busca do filho que ela teve após ser violentada por seu dono, o “sinhô” José Carlos, homem poderoso que tirava a virgindade e toda as escravas novas que comprava. Ana Felipa, a invejosa mulher dele, adota a criança após a morte do marido e depois de diversos contratempos Luísa perde o paradeiro da criança, para quem o livro é contado.

A obra deverá interessar tanto a historiadores, sociólogos, antropólogos, economistas, jornalistas e várias outras categorias, mas o melhor é que por trás de tudo há uma história sendo contada, uma história que vai prender a atenção dos leitores e que tem tudo para ser adaptada em outros meios e traduzida para muitos idiomas. Afinal, é o retrato perfeito de um momento histórico brasileiro de muita crueldade e injustiça e que (infelizmente) ainda carrega suas sequelas nos dias de hoje. “Tudo carecia de esperança, de vida, e a morte cheirava muito mal”.

terça-feira, 23 de março de 2010

CONVIVÊNCIA E SENSIBILIDADE NO LIMITE DA SOLIDÃO


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 10 de junho de 2006)

Best-seller francês sobre o sentido da vida e a arte do encontro

Enfim, juntos, de Anna Gavalda. Tradução de Alcida Brant. Editora Rocco, 528 páginas. R$ 58

Best-seller na França, onde vendeu mais de 700 mil exemplares, “Enfim, juntos” foi traduzido no mundo inteiro e confirma o talento de Anna Gavalda, francesa de 35 anos que fez mestrado em letras na Sorbonne e já lançou outros cinco livros de ficção, inéditos no Brasil.

Engana-se quem torce o nariz quando ouve falar em romances de grande sucesso, imaginando uma trama açucarada e de emoções fáceis. O livro sustenta uma história bastante interessante por mais de 500 páginas, em torno de uma reunião bastante inusitada de quatro pessoas num apartamento, expondo os problemas sociais franceses. “Eis que chega o inverno, matador dos pobres”.

Camille Fauque, a protagonista, é uma pintora amadora de talento que, porém, trabalha como faxineira. Vive num apartamento sem aquecedor no mesmo prédio que Philibert, um tímido apaixonado pela História da França, e Franck, cozinheiro arrogante e grosseiro que precisa visitar a avó doente às vezes. Os quatro, tão diferentes, se juntam no apartamento de Franck e Philibert, numa experiência que tem tudo para dar errado.

Como o leitor já deve ter percebido, é um livro sobre a convivência, palavrinha mágica que se fosse levada a sério poderia evitar desde brigas no trânsito à invasão de um país. O constrangimento é o primeiro obstáculo num país onde as relações humanas são tão frias quanto a temperatura no inverno. “Camille tentou não reparar nos sapatos furados e Philibert fez o mesmo em relação às manchas de umidade nas paredes”.

Idealista que torna viáveis
possibilidades remotíssimas


Franck é o elemento desagregador, que aparentemente só pensa em si e sempre se mostra crítico em relação a Camille, idealista que torna viáveis possibilidades remotíssimas. Philibert, encabulado e indeciso mas de bom coração, acaba aceitando as decisões de Camille. Mas é com Paulette, senhora que leva um tombo no início do livro e pára no hospital, que a autora explora a sensibilidade dos personagens. Quando Camille e Paulette se encontram, trata-se de um reencontro. Camille sai do trabalho e volta a pintar e Paulette, acostumada à frieza do neto e das enfermeiras, ganha ânimo novo. “O que as duas estavam vivendo, as trocas de olhares e as mãos entre as mãos enquanto a vida se esfarelava à menor lembrança, isso ninguém lhes tiraria”.

Para Camille, era a chance de dar sentido à sua vida, de se encontrar num lugar. “Ia fazer 27 e ainda não tinha feito nada que prestasse. Não tinha amigos nem lembranças e nenhuma razão de ter pena de si”. Uma mulher que não sabia fazer nada “normalmente, serenamente”, e que percebia pela primeira vez o dia lhe parecer suportável. No fundo, os quatro enfrentam tipos diferentes de solidão, cada um no seu mundo de ansiedade e melancolia. “Para que servem emoções não compartilhadas?”

Gavalda também tempera o livro com observações sobre o universo masculino, mas sem cair no estilo de autoras que abusam dos chavões sobre homens. Pelo contrário, ela abusa, sim, da ironia e da inteligência com sua protagonista. “É assim que se reconhece um cara legal: os rapazes que são gentis sem pensar em levá-la pra cama...” Camille enxerga através da máscara de machismo que muitos homens usam para se defender de mulheres observadoras e inteligentes. É seu maior mérito.

quarta-feira, 17 de março de 2010

RESGATE DE UMA DÍVIDA COM O PASSADO


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 20 de maio de 2006)

Galera chega onde autores de sua geração não conseguem: o lado humano dos personagens

Mãos de cavalo, de Daniel Galera. Editora Companhia das Letras, 192 páginas. R$ 34

O gaúcho Daniel Galera fez parte da extinta editora Livros do Mal, de Porto Alegre, que lançou autores que dificilmente teriam espaço nas “grandes casas do ramo”, muito mais preocupadas (com raríssimas exceções) em traduzir best-sellers e repetir os mesmos nomes de sempre. Agora ele lança seu terceiro livro, desta vez por uma grande editora, e mostra que longe do vicioso círculo Rio-São Paulo, com seus temas muitas vezes repetitivos, há uma galera (sem trocadilhos, por favor) nova produzindo literatura de grande qualidade.

Daniel Galera não retira os pontos e parágrafos do seu texto e também não começa frases com letras minúsculas, todos ingredientes vistos ultimamente como “inovações formais” de gosto bastante duvidoso. Seu texto é simples, assim como a estrutura narrativa. Mas o autor consegue extrair aquilo que é uma das matérias-primas dos clássicos literários: o lado humano dos personagens.

Descrições técnicas são importantes em certos momentos de uma história, mas acabam se tornando extremamente entediantes quando exageradas. Autores americanos, principalmente de best-sellers, gostam muito disso, gastando páginas e mais páginas para mostrar como funciona o motor de um trator ou o efeito de certa substância química. Enquanto isso, ficamos sem saber o que o personagem sente, pensa, ama, odeia, despreza etc.

Momento de reflexão
sobre a infância perdida


Não é o caso de “Mãos de cavalo”, em que o protagonista, Hermano, cujo apelido na infância é o título deste livro, é um cirurgião de sucesso, casado, com uma filha, e que vive praticando alpinismo com o amigo Renan. O casamento não vai lá muito bem, é verdade, mas o que poderia ser mais uma história sobre um sujeito angustiado que perdeu o sentido da vida e busca compensações em outras partes, acaba se transformando num interessante momento de reflexão sobre a infância perdida e todas as conseqüências que isso provoca no futuro.

“Viver, todavia, não tinha nada de heróico. Aos trinta anos, lhe parecia antes de tudo um constante ensaio para um heroísmo que nunca chega”. Hermano acaba se refugiando naquele garoto que gostava de andar de bicicleta a toda, sem se preocupar em cair e se arrebentar todo, como constantemente acontecia (“Não há terreno impossível para o Ciclista Urbano”). Revê, na memória, os amigos, os primeiros amores, as brigas, os jogos de videogame e filmes dos anos 80, as notas nas escolas, a relação com os pais e, principalmente, o dilema entre conceitos tão antagônicos como coragem e covardia. No fim, acaba percebendo que está diante de um desafio tão grande quanto o cume dos quase sete mil metros do Cerro Bonete, no Aconcágua, para onde tinha prometido ir com Renan.

Frustração por não ter
assumido uma atitude digna


Descrições bem feitas e sem exagero da paisagem gaúcha, com o pôr-do-sol do Guaíba e o vento frio batendo forte na cara, são o ambiente perfeito para os perfis humanos, principalmente o de Bonobo, “cuja cabeça parecia um feijão gigante equilibrado sobre um torso triangular embasado por uma pochete de banha” e que vai se tornar o personagem mais intrigante desta história, assumindo um papel fundamental no grande dilema de Hermano: a frustração por não ter assumido uma atitude digna na hora certa.

Daniel Galera não utiliza em nenhum momento uma linguagem melodramática, risco constante de quem lida com temas sentimentais. Seu humor é leve, extremamente agradável, longe do sarcasmo e da ironia que marcam muitos dos autores jovens dos anos 90 para cá. Não há, por exemplo, quem não se lembre da própria infância ao ler uma frase tão simbólica deste período da vida quanto esta: “Mesmo nas férias de verão, chega o dia em que um homem precisa tomar banho”.

Um amigo que vai ser pai, outro que morre, mais um que sai do bairro e ainda há aquele que muda de comportamento. As peças do quebra-cabeça da adolescência vão assumindo outras feições e não se encaixam mais. Hermano precisa encontrar “a pista definitiva para a sua identidade, a síntese de quem ele era, quem imaginava ser e quem todos os outros enxergavam”. Já numa fase em que rompeu praticamente todos os laços com essa fase da vida, numa fase em que todos, a mãe, a filha, os amigos, os pacientes, todos imaginam saber exatamente o que ele vai fazer, é que “Mãos de cavalo” resgata uma dívida com o passado. Uma dívida com ele mesmo e que é a própria síntese deste livro. “Faz muito tempo que não se entrega à fantasia com tanta vontade”.

Trecho do livro "Mãos de cavalo":

"A VELHA PASSA A MÃO NO cabelo dele e sorri. Ele olha mais uma vez para o joelho e vê que o sangue é mesmo bem escuro. Imagina como seria a cor do sangue bom, que era quase rosa de tão limpo. (...)
Mas o que escorre agora é definitivamente o sangue ruim, cheio de impurezas, como que sujo de carvão, desenhando linhas sobre sua canela quase sem pêlos.
Quanto mais pensa nisso, menos intenso é seu mal-estar diante dos machucados. Em sua imaginação há uma imagem elaborada de todas as veias e artérias percorrendo seu interior como uma rede de encanamento, mas tudo feito de músculos, de uma carne mole sustentada e articulada por ossos. (...) O suor cessa, e já não se sente mais tonto. Pelo contrátio, sua energia está restabelecida. As dores aumentam, mas há agora um certo prazer em suportá-las."

quinta-feira, 4 de março de 2010

ESCRITORES SEM ROSTO


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 15 de abril de 2006)

Contos autobiográficos de JT Leroy perdem a força depois da revelação da farsa em torno do autor

Maldito coração
, de JT Leroy. Tradução de Santiago Nazarian. Geração Editorial, 216 pgs. R$ 29

A enganação durou cinco anos. Em 2000 o escritor JT Leroy ganhou fama mundial ao
publicar o romance “Sarah” e a coletânea de conto autobiográficos “Maldito coração”, que chega agora ao leitor brasileiro (“Sarah” já havia sido lançado pela mesma Geração Editorial). O que chamou a atenção nesse autor foi a forma realista e cruel com que ele narrou sua infância e adolescência, filho de uma prostituta que se oferecia e oferecia o filho vestido e mulher nas estradas americanas. Recentemente “descobriu-se” que JT Leroy nunca existiu e que tudo que ele narrou não passa de ficção. E a pergunta que se faz é: quem vai assumir a farsa?

Sim, porque não dá para usar outro termo ao definir esta reles jogada de marketing. Há uma grande diferença entre ler uma história de um personagem sofrido e vítima de bizarrices sexuais sabendo que ele existiu e ler isso tudo sabendo que é pura ficção. JT Lerou, segundo se divulgou, é criação de uma roqueira fracassada, Laura Albert, que na verdade é representada mundo afora (inclusive no Brasil) por Savannah Knopp, meio-irmão do companheiro de Laura. Entendeu? Pois é, melhor deixar esta história sórdida e confusa para trás e ir ao livro, que é o que interessa.

São dez contos, episódios da infância e adolescência de Jeremiah, filho da tal prostituta, Sarah, e o que mais impressiona é a lúcida resignação com que o garoto aceita seu destino das mãos, cintos e outros objetos punitivos da mãe e de seus muitos amantes, pais de ocasião que de vez em quando alimentam desejos nada paternais pelo garoto.

“Sempre é mais fácil convencer as pessoas de que está tudo bem, porque se não estiver, elas terão de se envolver. Assim, Jeremiah acaba aceitando sua dura realidade como um martírio pelo qual terá de passar. A culpa e o pecado aparecem em diversas circunstâncias de sua vida, o que pode fazer de uma inoportuna ereção motivo pra uma punição carregada de falsos moralismos.

Protagonista tem uma relação neurótica e
de amarga cumplicidade com a mãe


A relação que se estabelece com a mãe é de uma amarga cumplicidade e o conto que dá título ao livro ilustra bem isso, quando Sarah ensina o garoto a roubar produtos no supermercado. Os raros momentos de carinho e ternura dela por ele são conseqüência de um amor neurótico, motivado muito mais pela excitação das bebidas e dos antidepressivos – ou pela falta deles.

Num mundo sem referências saudáveis, sem ter onde se apoiar, nem ter com quem contar, Jeremiah nasce como um anjo torto, que se veste de menina para agradar aos clientes da mãe, que desconhece qualquer tipo de amor verdadeiro, que sabe que tudo está errado com ele mas não tem forças para mudar sua vida.

O problema é que lá pelo quinto conto o tema já soa bastante cansativo, pois não sai do trinômio culpa/perda da inocência/mundo cão, com direito a todo tipo de perversidade sexual. Por mais que bons livros sejam escritos, bons filmes e músicas feitos, o tema já soa por demais batido e dá até para compreender que este autor, ou autora, precisasse de uma mentira para chamar a atenção. Vivemos a época dos escândalos, infelizmente, e se não fosse por isso seus livros, apesar de bem escritos, seriam mais uns na multidão.