terça-feira, 26 de maio de 2009

O PARAGUAI E SUA TRISTE HISTÓRIA ENTRE SONHOS, DELÍRIOS E FANTASIAS


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 24 de março de 2001)

Roa Bastos, que participou da guerra do Chaco, tem o estilo do desespero

Contravida
, de Augusto Roa Bastos. Tradução de Jocely Vianna Baptista. Ediouro, 208 páginas. R$ 19

“O processo”, de Kafka, e “O estrangeiro”, de Camus, além de serem duas obras-primas, têm em comum a primeira frase bombástica, capaz de atrair o leitor mais preguiçoso ou desinteressado. Lembrando a velha cautela de se guardar as devidas proporções, “Contravida” também faz no início um convite, impregnado de pessimismo, mas que logo se revela uma profusão de metáforas das mais interessantes: “A primeira coisa que percebi de meu corpo foi o fedor de carniça”.

Personagem procura o seu
passado e o do país


As semelhanças param aí, pois o bom livro do paraguaio Augusto Roa Bastos, prêmio Cervantes de 1989, contém boas doses da chamada literatura fantástica, característica ou calcanhar-de-aquiles de nove em cada dez autores latino-americanos. Mas antes de se entregar a delírios e fantasias impregnados de saudosismo, o protagonista da história foge da prisão e, através da viagem em um trem “matusalênico”, passa a limpo parte da história do país, semelhante à de quase todos deste lado do sul do Equador. “Por mais voltas que se dê às palavras, sempre se escreve a mesma história”.

Bastos, que lutou na inacreditável guerra do Chaco, entre Paraguai e Bolívia, molda seu estilo em parágrafos curtíssimos, em boa parte aforismos de concisão e desespero: “Não há nada mais feio que a velhice infame. Feiúra feíssima”. O seu personagem, único sobrevivente de um massacre de presos, busca a origem, a casa dos pais, que pode ser o passado do próprio país, ao qual Bastos dá uma dignidade emocionante.

“...A infância não se perde. Nós sempre a levamos dentro de nós. Como você quer voltar para um lugar de onde nunca saiu?” O folclore, os dialetos da língua guarani, a humildade resignada do camponês e um orgulho que desafia estereótipos como aqueles que só relacionam o país ao contrabando de produtos eletrônicos estão por todas as páginas e lugarejos, principalmente na figura de Gaspar Cristaldo, uma espécie de Policarpo Quaresma sem lugar no tempo e no espaço, que constrói uma cidade invisível e se envolve na revolta dos personagens de seus livros. “Este é o lado mau de escrever histórias fingidas. As palavras se afastam da gente e se tornam mentirosas”. Mas se a culpa é delas, há que perdoá-las, pois as palavras têm o poder de sublimar a rotineira paisagem através do lado lírico das metáforas: “A montanha é o horizonte no alto”.

Busca de raízes tira a
linearidade do texto


Neste ponto, a armadilha do início já cumpriu o seu papel, o de fazer o leitor esquecer o que é uma história linear, com início, meio e fim, pois essa busca pelas raízes, constante em todo o livro, é algo impossível de se medir por parâmetros e técnicas muito formais. Dá para esquecer, por exemplo, dos torturadores que estão no trem, em missão especial, e da mulher com o macaco libidinoso, que tudo leva a crer ser uma informante da polícia. A fantasia, o delírio, o sonho tornam a história muito muito mais abrangente do que poderia ser, dando a ela um sentido talvez tão digno como o que busca Cristaldo, o homem que acredita na sentença de que nascemos todos os dias e morremos ao anoitecer.

Neste caso, a existência perde o sentido de luta contra a morte e o próprio destino do fugitivo, apaixonado pelas idéias de Cristaldo, vai revelar isso. O professor manda os estudantes construírem um columbário, o mausoléu onde os romanos colocavam urnas e vasos funerários. Mas seu objetivo é exatamente o contrário: ele o constrói para as pessoas vivas, a fim de que a idéia de morte fosse desterrada para sempre. No lugar de um corpo, uma flor ou uma foto, por exemplo. O importante era preencher o que seria um local fúnebre com os desejos dos vivos.

Os estudantes que o rodeavam se consideravam cúmplices da sabedoria de Cristaldo, um apaixonado por livros e que vivia no limite entre realidade e ficção, ao expor seus personagens para a vida. Uma de suas frases poderia até servir para uma campanha de incentivo à leitura, um pouco grosseira, é verdade, mas provavelmente eficaz: "Não há nada que humilhe tanto os ignorantes como um livro".

quinta-feira, 7 de maio de 2009

AGRURAS DE UM TORCEDOR APAIXONADO


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 23 de dezembro de 2000)

Hornby faz de seu fanatismo pelo futebol o tema do romance ´Febre de bola´

Febre de bola (a vida de um torcedor),
de Nick Hornby. Tradução de Paulo Reis. Editora Rocco, 248 pgs. R$ 20

Nick Hornby é o escritor cult do momento. Desde o sucesso do livro “Alta fidelidade” ele é citado em nove entre dez conversas intelectualizadas, principalmente devido às intermináveis listas de cinco melhores e piores de qualquer coisa. “Febre de bola” provavelmente fará parte do enredo destas mesmas conversas, nem que seja para convencer quem não gosta ou não entende de futebol a ler o livro. Será uma árdua tarefa, já que Hornby fala a maior parte do tempo do Arsenal, legítimo representante de uma das piores coisas que Deus já colocou na face da terra: o futebol inglês.

Mas vá lá, apesar de excessivas descrições de times, táticas, tabelas e históricos de alguns clubes do botinudo futebol da terra onde nasceram o punk e os hooligans, citados constantemente, o autor faz do esporte mais popular do planeta um pano de fundo para suas experiências de vida, profundas ou superficiais, alegres ou tristes. “Quando terminou o meu primeiro caso amoroso de verdade? No dia seguinte a um empate decepcionante por 2 a 2 com o Coventry em 1981”.

Como qualquer fanático por futebol, ele nem precisaria dizer que é um obsessivo, embora repita isso constantemente. O que esperar de um sujeito já passado dos 30, com um tornozelo inchado, que convence a namorada e um casal a enfrentarem uma chuva torrencial para verem um empate sem gols entre o Arsenal e o Wimbledon? A diferença entre ele e a maioria dos torcedores obsessivos é que Hornby escreve bem, é engraçado e abusa do humor sutil – talvez o melhor argumento para convencer quem não suporta futebol a ler o livro.

Desde sua primeira ida ao estádio de Highbury, ainda criança, com o pai, até a fase em que já é professor de inglês e tenta se iniciar na literatura, os sucessos e tropeços – estes em maior quantidade – do Arsenal estão intimamente ligados ao seu crescimento, à descoberta das mulheres, à dor da separação dos pais, à música pop, drogas leves, frustrações profissionais e à passagem por Cambridge, onde torceu arduamente pelo Cambridge United, então um legítimo representante da quarta divisão inglesa (eu disse que ele era um obsessivo!).

Uma diversão que se
confunde com o sofrimento


Seria patética, se não fosse séria, a maior preocupação deste ensandecido torcedor em relação ao futuro, traduzido por família e filhos. “Deve haver muitos pais pelo país afora que já viveram a rejeição mais cruel e devastadora de todas: seus filhos acabaram torcendo pelo time errado”.

O pessimismo latente em relação aos jogos do Arsenal (“o estado natural do torcedor de futebol é de amarga decepção, pouco importa qual seja o placar”) ilustra a falta de perspectiva em relação ao futuro profissional, após diversas cartas de rejeição de editoras, a dificuldade em conciliar uma vida social e afetiva com as tardes de sábado, quando são realizados os jogos, e a constatação de que a sua principal diversão é uma espécie de sofrimento.

Falta ao livro que o bom humor, a ironia e as frases inteligentes sejam usados em mais jogos fora da limitadíssima Liga Inglesa. Como ele faz ao dar uma das mais autênticas definições sobre a seleção brasileira de 1970, quando Pelé e companhia foram vistos pelo mundo inteiro ao vivo pela primeira vez: “Aquele time revelou uma espécie de ideal platônico que ninguém, nem os próprios brasileiros, seria capaz de atingir novamente”.